Mesmo quando o encontra definhando, vivendo entre animais em sua “nova sociedade,” ela
não o julga; ao contrário, trata de alimentá-lo e cuidar dele, aceitando com resignação seu
bovarismo, apenas lamentando seu estado. Nesse ato de amor silencioso e incondicional, Lea
assume o papel de mãe para Mayer—mesmo que seja de seu próprio marido. A dinâmica entre
os dois remete a conceitos freudianos, onde os papéis de mãe e esposa se entrelaçam,
especialmente no contexto de uma família judia, onde o amor de uma mãe judia é visto como
inesgotável. Segundo Freud, essa mistura de papéis pode ser uma manifestação de desejos
inconscientes e da complexa rede de afetos que permeia os relacionamentos íntimos. Léia, ao
cuidar de Mayer como uma mãe cuida de um filho, expressa um amor que, embora repleto de
contradições, é profundamente enraizado em sua identidade e tradição judaica, reforçando o
laço conjugal enquanto revela as vulnerabilidades de ambos.
Da perspectiva ambígua sobre o “porco”
A visão sobre o porco na narrativa é marcadamente ambígua. Em diversas culturas, com
exceção dos sino-vietnamitas e entre os egípcios, o porco simboliza a comilança e a voracidade,
frequentemente associado a tendências obscuras, “sob todas as suas formas, da ignorância, da
gula, da luxúria e do egoísmo”, sendo essa a razão espiritual de sua interdição (Chevalier;
Gheerbrant, 1998: 734).
Biblicamente, a transgressão referente ao consumo de carne suína explica-se no livro de
Levítico, parte do Pentateuco, em que o porco é descrito como um animal com a unha fendida
e o pé dividido, mas que não rumina, o motivo de sua impureza: "Não comereis da sua carne e
não tocareis nos seus cadáveres: vós os tereis por impuros" (Levítico, 11:7-8). Portanto,
qualquer consumo ou contato com carne suína constitui uma violação direta desse preceito.
Ademais, as restrições alimentares não se baseavam em critérios nutritivos, médicos ou
gastronômicos, mas sim eram vistas como um conjunto de normas destinadas a reforçar o
isolamento cultural da comunidade judaica (Carneiro, 2003).
Apesar de assimilado por sua família como proibido, Mayer, quando compartilha com os
animais a construção de sua nova sociedade, inclui o porco entre os companheiros, ao lado da
“Companheira Cabra” e da “Companheira Galinha”. Ele ainda apresenta e defende o porco
perante sua esposa, afirmando: “Quanto ao Companheiro Porco, é leal e corajoso. Se não
trabalha mais é devido à sua própria natureza...” (Scliar, 1980: 72).
No entanto, Mayer também utiliza a palavra "porco" como xingamento, especialmente ao
referir-se aos "porcos capitalistas" contra os quais se posiciona. Essa ambiguidade é
intensificada pelo fato de que, apesar de ter desejado e consumido a carne de porco, ele usa o
termo de forma pejorativa. Essa dualidade revela suas contradições internas em relação ao
animal, refletindo suas complexas atitudes ideológicas e culturais. Ao empregar o termo
"porco" como insulto aos capitalistas, Mayer associa o animal à ganância e à corrupção,
utilizando símbolos culturais e religiosos de maneira provocativa para transmitir suas críticas
sociais e políticas. Assim, o porco na obra de Scliar não é apenas um animal, mas um elemento
crucial para explorar as complexidades da identidade judaica, da ideologia socialista e das
tensões culturais.