Ruan Lucas Marciano
VIOLÊNCIA E NORMALIZAÇÃO: DISCURSO NA IMPRENSA GOIANA NA PRIMEIRA METADE
DO SÉCULO XIX (1838-1850)
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VIOLÊNCIA E NORMALIZAÇÃO: DISCURSO NA IMPRENSA GOIANA NA
PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIX (1838-1850)
VIOLENCIA Y NORMALIZACIÓN: EL DISCURSO DE LA PRENSA GOIANA EN
LA PRIMERA MITAD DEL SIGLO XIX (1838-1850)
VIOLENCE AND NORMALIZATION: DISCURSE IN THE GOIANA PRESS IN THE
FIRST HALF OF THE XIX CENTURY (1838-1850)
Ruan Lucas Marciano
1
Universidade Federal de Goiás
E-mail: ruan_marciano@discente.ufg.br
Resumo
A imprensa no século XIX, responsável por ser o porta-voz oficial do Estado na província de
Goyaz, é um ponto de partida adequado para compreendermos a violência nesse espaço. Nos
pontos de abordagem da pesquisa, é possível observar que o jornal Correio Oficial foi uma
das principais ferramentas de controle discursivo na primeira metade do século XIX, em
Goyaz. Tal percepção é possível quando analisamos as principais formas de transpassar
notícias de cunho violento à população, alocando o sentido de justeza e circunstâncias para
tais acontecimentos e julgamentos. O ambiente violento apresenta-se envolto de tensões
sociais, principiadas pelas relações entre dominantes e dominados. Em paralelo, a violência
além de institucionalizada, passa pela percepção de normalização dos comportamentos,
incluindo a perseguição e criação de inimigos sociais, baseados no pensamento patriótico
pretendido pelo Império. Em contrapartida, os sujeitos inseridos nos casos analisados, não se
abstêm de respostas, dentro das possibilidades de transgressão. Nesse sentido, o artigo
problematiza as dinâmicas das relações de poder e força, que são criadas a partir do
tensionamento social, expressas pelo Correio Oficial. É uma forma de instigar novas
abordagens sobre o tema violência na formação social goiana.
Palavras-chave: Violência, Imprensa, Transgressão, Normalização, Goyaz.
1
Graduado em Licenciatura Plena em História (UEG), Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História
da Universidade Federal de Goiás. Bolsista FAPEG.
Ruan Lucas Marciano
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Resumen
La prensa en el siglo XIX, encargada de ser la vocera oficial del Estado en la provincia de
Goyaz, es un adecuado punto de partida para comprender la violencia en ese espacio. En los
puntos de abordaje de la investigación, es posible observar que el diario Correio Oficial fue
una de las principales herramientas de control discursivo en la primera mitad del siglo XIX,
en Goyaz. Tal percepción es la forma en que los principales noticieros transmiten noticias de
casos violentos a la población, asignando el sentido de formas y análisis justos a tales hechos
y posibles juicios. El ambiente violento se presenta envuelto por personas sociales, iniciando
relaciones entre dominantes y dominados. Paralelamente, la violencia, además de
institucional, implica la percepción de normalización de conductas, incluida la creación de
enemigos sociales, en el pensamiento patriótico proyectado por el Imperio. Por otro lado, los
involucrados en casos sospechosos no se abstienen de responder, dentro de las posibilidades
de transgresión. En ese sentido, el artículo problematiza las dinámicas de relaciones de poder
y fuerza, que se crean a partir de la tensión social, expresadas por el Correio Official. Es una
forma de instigar nuevos abordajes sobre el tema de la violencia en la formación social
goiana.
Palabras clave: Violencia, Prensa, Transgresión, Normalización, Goyaz.
Abstract
The press in the XIX century, responsible for being the oficial mouthpiece of the State in the
province of Goyaz, is na adequate starting point for understan ding violece in that space. At
the research approach points, its possible to observe that the Correio Oficial newspaper was
one of the main discursive control tools in the first Half of the XIX century, in Goyaz. Such a
perception is possible When we analyze the main was of transmittion, allocating a sense of
fairness and circumstances to such events and judgments. The violent environment is
surrounded by social tensions, initiated by the relations between dominand and dominated. In
parallel, violence, in addition to being institutionalized, goes throigh the perception of
normalization og behavior, including the persecution and creation of social enemies, based on
the patriotic thought intend subjects inserted in the onalyzed cases, do not abstan from
answers, within the possibilities of transgression. In this sense, the article problematizes the
dynamics of power and strength relations, wich are created from social tension expressed by
the Official Post. It is a way to instigate new approaches on the subject of violence in the
social formation of Goiás.
Keywords: violence, press, transgression, normalization, Goyaz.
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Introdução
Na província de Goyaz
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em meados do século XIX, às quartas e sábados o jornal Correio
Official de Goyaz destinava sua Typografia Provincial às notícias da sociedade goiana.
Criado em 1837, por José Rodrigues Jardim, O Correio Oficial de Goyaz foi idealizado como
um expressor oficial do Estado, de acordo com lei provincial do mesmo ano, e foi tutelado
pela Igreja durante sua primeira fase (1837-1852); portanto, o periódico foi o principal meio
de comunicação da província de Goyaz nesse período, se caracterizando pela divulgação
publicitária, mas essencialmente por apresentar decretos, fugas, julgamentos, prisões etc.
(Borges; Lima; 2008: 74). Ao analisá-lo é possível observar parte do contexto violento
durante o período imperial em Goyaz, principalmente se considerarmos as formas de
institucionalização dessa violência que se estende pelas múltiplas tensões sociais do período,
isto é, a criação moral do inimigo social indígenas, vadios, prostitutas, escravizados, entre
outros.
Logo, essa pesquisa possui o intuito de pormenorizar essa temática que, de certa maneira, nos
possibilita analisar os pontos de expressão do Estado para a população quanto à violência. Por
outro ponto de vista, podemos observar que os dispositivos de controle social, que
objetivavam a retirada de sujeitos marginalizados do espaço público, são controlados pela
elite. Soma-se a isso o apoio nos discursos oficiais baseados nas leis provinciais e imperiais, o
acesso a cargos públicos pela mesma elite dirigente e o monopólio da imprensa (VIEIRA,
2016). Para tais debates, pretendo analisar documentos do supracitado jornal, com intuito de
apresentá-los às dinâmicas que circundam os espaços sociais e a violência estabelecida por
embates, resistências e repressões.
Ainda que pouco estudada diretamente, a violência pode ser observada em inúmeros trabalhos
sobre o século XIX. Um exemplo próximo da análise proposta é a pesquisa de Rabelo (2010),
de título A Normatização dos Comportamentos na Cidade de Goiás (1822-1889), que expõe
os principais traços de controle institucional estabelecidos pela elite no século XIX, na cidade
capital da província de Goyaz. Em âmbito nacional, os apontamentos de Franco (1997) no
livro Homens Livres na Ordem Escravocrata nos aproximam de forma específica da violência
no século XIX, por dedicar parte de seu trabalho à temática. Utilizarei outros autores que não
citarei aqui, mas serão de suma importância para o debate que se estenderá a seguir.
2
Para Gonçalves (2006), as províncias foram divisões judiciárias e legislativas capazes de aprovar leis e
jurisprudências próprias de acordo com cada divisão provincial por meio de decretos, infere a autora: “o
chamado Ato adicional estabelecia, dentre outras coisas, a existência de assembleias legislativas em cada uma
das províncias com faculdade de aprovar leis, desde que não incorressem em matérias exclusivas (e, portanto, do
parlamento). Assim, doravante, cada província podia deliberar acerca de seu próprio orçamento, podendo dispor
dos recursos da maneira que considerassem mais adequadas e criando impostos para incrementar a arrecadação
[...] Outras atribuições também se tornaram específicas da esfera provincial, como a divisão civil, judiciária e
eclesiástica da província; a instrução pública; a força policial; as obras públicas, incluindo a estrutura viária da
província (estrada, navegação), as casas de socorro público e conventos; entre outros” (Gonçalves, 2006: 31-32).
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Ambiguidade e repressão: o processo judiciário e a justeza jornalística
Em quatro de abril de 1838, a 88ª edição do Correio Official de Goyaz apresentava aos
leitores na Parte Policial”, condenações de sujeitos sentenciados na província. Ainda na
primeira página, é possível observar o caso da Sessão extraordinária”, na qual o Juízo de
Paz de Santa Cruz relatava o processo contra Manoel Crioulo”, escravizado de Joaquim
Mendes Ramos, acusado pelo homicídio de D. Quiteria Justina, mulher de Ramos (Dados do
Conselho). O julgamento ocorrido no dia dois de janeiro do corrente ano declarava
Manoel culpado pelo crime de homicídio perpetrado contra sua senhora; segundo o jornal,
não havia dúvidas quanto ao ocorrido em decorrência da quantidade de testemunhas.
O ponto de maior desdobramento do caso ocorre na tentativa de defesa de Manoel em seu
julgamento, em que alegou após sua confissão que matará a sua Senhora seduzido por sua
Mai Sophia, por lhe dizer esta que com a morte daquela ficava réo forro”; após o
depoimento, o promotor limitou-se a pedir que se fizesse justiça”. Na urdidura do caso, o
jornal apresenta, após o julgamento de Manoel, o Conselho contra Sophia de Oliveira
alegando provas suficientes para sua acusação, aparentemente apenas com o depoimento de
Manoel, sendo reafirmado por testemunhas. Em 2º Conselho:
“Sophia de Oliveira, cor preta, liberta, de idade quarenta anos, natural
da Provincia de Minas, solteira, vive de flar, e cozer, pronunciada no
Juizo de Paz da Cabeça do Termo de Santa Cruz a 2 de janeiro de
1838, por crime de morte perpetrada em D. Quiteria Justina, mulher
de Joaquim Mendes.
O crime estava plenamente provado tanto por testemunhas, como por
confissão da livre em juízo competente. Novamente confessa na
barra do Tribunal de Jurados havelo perpetrado, e relata todo o
sucesso. Nada alegou em sua defesa, e declarou o Jury por
humanidade de votos de todos os doze jurados, haver a ré incorrido no
gráo máximo da culpa, em consequência do que foi julgada incursa no
Artigo 192 do código penal, e condenada a sofrer a pena Capital.”
3
Quanto à pretensão diagnóstica de justeza do julgamento o jornal inferiu: “Foi justa a decisão
do Jury: o crime estava plenamente provado, foi acompanhado das circunstâncias
agravativas dos Artigos 16 §§ 4,6,7,9,10, 11, 15, 16, 17 e do 17 §§ 1º, e do Código
Penal, sendo por isso bem-merecida a pena que lhe foi imposta”. Como observamos no
documento, as acusações baseavam-se tanto na confissão de Manoel quanto nas testemunhas
que, possivelmente, faziam parte do círculo social do casal.
Os doze jurados proferiram a sentença com base nos Artigos 16 e 17 do código penal do
Império brasileiro de 1830; ambas as penas, de Manoel e Sophia, foram a máxima do
sistema pena capital contendo os incisos mencionados. O inciso do art. 16, que
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Correio Official (1838) Nº 88, Fundação Biblioteca Nacional (Brasil). BN Digital: Rio de Janeiro.
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específica circunstâncias agravantes” do crime, alude os motivos torpes e frívolos do crime;
o relata a utilização de armas; o inciso apresenta a posição social do criminoso quanto à
vítima, ou seja, haver ofendido a qualidade de ascendente, mestre, ou superior do
delinquente”; o acusa fraude; a 10ª parte do artigo pressupõe abuso da confiança nelle
posta”; o 11º destaca que o sujeito predestinou o ocorrido por haver possibilidade de
recompensa; os incisos 15º e 16º referem-se à circunstância de surpresa e ao uso de
disfarce”; e, por fim, o 17º a participação de outros indivíduos na efetivação do crime. Os
incisos do Art. 17, respectivamente: o destaca a ofensa contra família, extrapolando as
relações diretas do ocorrido; no consta a argumentação extraordinária de ignominia”,
portanto, de ofensa direta como pressuposto atenuante; por último, o pela natureza
irreparevel do danno”. As acusações baseadas nos artigos mencionados são utilizadas
principalmente contra escravizados, principais receptores da pena máxima no Império,
determinada pelo Art. 192 que afirma: Matar alguém com qualquer das circunstâncias
agravantes mencionadas no artigo dezaseis, numerou dous, sete, dez, onze, doze, treze,
quatorze, e dezessete”, as penas poderiam variar entre de morte no gráo máximo; galés
perpetuas no médio; e de prisão com trabalho por vinte anos no mínimo
4
.
As circunstâncias sociais dos sujeitos observados, Manoel e Sophia, são importantes nesse
aspecto. Manoel estava em condição escrava, e foi seduzido pelas suposições de Sophia ao
alegar a obtenção da carta de alforria caso sua senhora falecesse. Sophia, em condição de
liberta, ao apresentar sua ideia a Manoel, foi julgada com mesma pena e em conjunções
agravantes idênticas às do sujeito escravizado. Chalhoub (2012) instiga-nos a algumas
reflexões quanto à violência e à escravidão no século XIX, que se interligam aos processos
criminais e insere-se a lógica jurídica; todavia, não podemos considerar as dinâmicas da lei
como característica de humanização. O autor afirma que um escravo frustrado no intento de
se alforriar, após sabe-se quanto sacrifício para juntar suas economias, poderia se tornar
resistente ao trabalho rotineiro, tentar a fuga, entrar em conflito com o feitor ou com o
próprio senhor" (2012: 57). As disputas tornam-se constantes com a impossibilidade da
alforria, na medida em que as conjunturas apontam para complexidade de obtenção da
liberdade. Esse tensionamento social é evidente quando observamos as ferramentas de
controle desses sujeitos, as estratégias violentas por parte da elite escravista são cada vez mais
alinhadas com o projeto jurídico, além das intensas condutas apoiadas na tortura, castigos
alimentares e morte de escravizadas por parte dos senhores. Com efeito:
“Por mais que os senhores prezassem o domínio privado que tinham
sobre seus escravos, com os grandes fazendeiros avessos a qualquer
ingerência [...] o fato é que contavam com iniciativas legislativas e
com o judiciário para auxiliá-los no controle social dos escravos. Foi
assim em meados da década de 1830, quando a ocorrência de
4
Código Criminal Do Império Do Brasil (1830), Planalto.
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revoltas escravas importantes em especial a de Carrancas na
província de Minas Gerais, em 1833, e a dos Malês na Bahia, em
1835, levou o governo imperial a aprovar lei destinada a encurtar o
caminho para a condenação à morte de cativos acusados de
insurreição, de tentarem contra a vida de seus senhores
administradores, feitores e familiares.”
5
Chalhoub, 2012: 62.
Os julgamentos no período Imperial baseavam-se nas determinações separatistas entre
sujeitos livres e escravizados, portanto os indivíduos livres seriam condenados com base na
justeza das leis enquanto os escravizados, principalmente aqueles que atentavam contra a vida
dos senhores, teriam a predisposição à pena de morte. As leis foram utilizadas de duas
maneiras, a sentença de Manoel foi realizada com base na lei de junho de 1835, e condenado à
pena de morte. Sophia não foi enquadrada em tal lei, mas teve sua pena declarada em grau
máximo. Nota-se que o intuito da condenação não foi apenas de controle dos escravizados,
não obstante, os indivíduos livres e alforriados também confeririam a representação de
inimigos sociais, logo a pena foi considerada justa pelo jornal.
O papel das testemunhas pode nos aproximar ainda mais das dinâmicas entrecruzadas no
julgamento. Isso confere o sentido esquemático e racionalizado do sistema judicial desse
período; me refiro ao processo de confirmação e afirmação das testemunhas que pode ser de
caráter simbólico. Em Homens Livres na Ordem Escravocrata de Franco (1997), apesar de
não abordar a relação entre as leis e escravidão frontalmente, a autora nos traços do
processo judiciário e a violência que se ramifica nas apreciações testemunhais. As
caracterizações da violência durante o Império brasileiro são amiúde formadas por
dinâmicas ordinárias, isto é, são as relações cotidianas que criam cenários de contendas e
desavenças. Um dos efeitos do que mencionei é a aceitação de situações antagônicas “como se
fossem parte da ordem natural das coisas(Franco, 1997: 55). Para a autora a consequência
da naturalização é a aceitação e não interferência nas contendas por parte das testemunhas, a
disputa é encarada como um assunto privado, cabendo aos adversários decidi-lo como
5
A lei apresentada pelo autor, de 1835, apesar de ter sido reelaborada e utilizada apenas em casos específicos de
transgressão por parte dos escravizados, no entanto, Assim estavam as coisas quando, em 30 de outubro de
1854, a seção de Justiça do Conselho de Estado se reuniu para examinar uma curiosa representação enviada ao
Governo Imperial [...] Os deputados paulistas protestavam contra a conduta do imperador no que concerne à
comutação das penas dos cativos [...] pois eles „julgavam preferível a sorte de galés, e o trabalho forçado nas
obras públicas à sua sorte de cativos‟. Os conselheiros de Estado elaboraram uma resposta detalhada à missiva
do legislador paulista, na qual não faltam ironias veladas à aparente excentricidade da ideia de que os escravos
das fazendas paulistas preferiram labutar no sistema prisional do Império a permanecer na escravidão em que
estavam. Se os cativos fossem bem tratados e tivessem mais instrução religiosa, estariam mais contentes e
resignados...Contudo, o principal argumento dos conselheiros em defesa da comutação das penas era o de que a
lei de 1835 não surtira efeito pretendido, não diminuirá a incidência de crimes de escravos contra seus
senhores” (Chalhoub, 2012: 63).
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melhor lhes prover (Ibidem; 56). As testemunhas, ao participarem de um julgamento, são
desvinculadas do cotidiano e obrigadas a colaborar com a racionalização judicial, estão frente
a delegados, promotores, juízes e em nosso caso ao lado do senhor dono do escravizado
sentenciado, Manoel. Franco (1997: 59) afirma que as testemunhas se pronunciaram quando
sujeitas à polícia e ao aparelho judiciário, que justamente visavam garantir a implantação
dos preceitos racionais
6
”, diante dessas condições deviam satisfações nas instâncias legais
para se garantir a efetividade e legitimação punitiva.
Apesar de não considerar as indicações de Foucault (2014) em Vigiar e Punir quanto aos
suplícios aplicáveis aos processos do século XIX, no Brasil, o autor pode nos ajudar a
entender como funcionavam as dinâmicas testemunhais e seus impactos na redistribuição
punitiva. Para o autor trata-se da repetição dos rituais punitivos: a testemunha entra em
cena para reforçar o jogo do poder institucional. Isso acontece porque os mais pobres se viam
no sistema punitivo quando eram julgados, sua participação era quase exclusivamente a de
réu. Os incautos judiciários observaram que as punições sem reforço da necessidade da pena
eram questionadas, principalmente se considerarmos que as punições se destinavam (isso não
mudou muito) às classes pobres com graus de intensidade maiores do que à elite (Foucault,
2014: 62). A aplicabilidade das testemunhas está amparada sobretudo nas penas de morte.
Esse fator ocorre nas relações entre criados e senhores, a valer:
“[...] A pena de morte [...] provocava muito descontentamento,
porque os criados eram numerosos, e era difícil para eles, nesse
assunto, provar inocência, podiam ser facilmente vítimas da maldade
dos patrões e da indulgência de certos senhores que fechavam os
olhos tornavam mais iníqua a sorte dos servidores acusados,
condenados e enforcados. A execução desses criados muitas vezes
dava lugar a protestos.”
Foucault, 2014: 62
6
Vale apreciar que a autora utiliza as afirmações que mencionei como parte dos pressupostos de ausência e
negação de testemunhas ao interferirem em contendas, a citação completa é: “Vale notar que a própria inquirição
nos casos aqui considerados faz parte de uma ampla rede de normas e ações racionalmente estruturadas. Os
preceitos desse direito racionalmente impossíveis de serem negados -, quando propostos num processo que
mobiliza os setores racionais da consciência, não poderiam deixar de ser reconhecidos. Nessas condições, a
supressão da vida in abstracto não poderia ser manifestamente admitida, embora fosse concretamente legítima e
natural a eliminação do adversário. É preciso não esquecer também que essas testemunhas se pronunciaram
quando sujeitas à polícia e ao aparelho judiciário, que justamente visavam garantir a implantação dos preceitos
racionais. Desse modo, embora o sistema de valores efetivamente vinculado à ação dessas pessoas implicasse a
negação desses preceitos, a desconfiança e o constrangimento, quando não o medo, inevitáveis numa situação
estranha à sua rotina de vida cujo sentido era o de impor padrões contraditórios aos seus próprios, levam-nas a se
exteriorizarem pela adesão formal às regras propostas por aqueles sob cuja jurisdição se encontravam” (Franco,
1997: 59).
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O processo de Manoel e Sophia procede da condição testemunhal como pressuposto de
culpabilidade. Incide-se que as testemunhas acompanharam os dois casos, sendo que pela
documentação apresentada Manoel era o autor do crime, enquanto Sophia era considerada
persuasora. Aparentemente, as testemunhas no caso de Sophia são alocadas como forma de
significação da pena, ou seja, são peças afirmativas para o sistema punitivo. A condenação da
lei de 1835 utilizada como argumento da sentença de Manoel não pôde ser utilizada no
julgamento de Sophia pois encontrava-se alforriada da exploração escravista. Não é possível
fazer afirmações factíveis quanto à participação das testemunhas; no entanto, pode-se refletir
quanto a algumas informações: o jornal não expôs se havia relação plausível entre a julgada
Sophia e as testemunhas, pois sabemos que foi Manoel quem aferiu o ato que retirou a vida
de sua senhora, tratando-se de uma ocasião que pode ser constatada visualmente; Sophia
aparentemente não estava presente, visto que foi necessário o testemunho de Manoel para
incluir a mesma no caso; isso nos leva a acreditar que Sophia foi acusada com base em
presunções das testemunhas, sua fala, na qual pressupõe a alforria após a morte da escravista,
foi destinada à Manoel e possivelmente não teria saído do ciclo de interação entre os dois,
apenas em sua confissão; a exposição das testemunhas pode ter passado pelo crivo e
influência social do dono de Manoel: melhor dizendo, as condições sociais de um senhor ou
possuidor de escravizados conota a posição social do sujeito, conferindo a influência social
dele sobre as testemunhas.
Alia-se às testemunhas os próprios pressupostos da justiça Imperial de racionalização das
punições. Lourenço (2001: 86) nos aproxima de argumentos complementares nesse sentido,
incluindo aspectos da lei como autolegitimadora, pois ela nunca poderia ser tida como
injusta; se complementará nas mais diversas punições como ferramentas performáticas e
persuasivas, pois trabalha com suposições de igualização do ser humano, logo todos estariam
predispostos às normalizações. Contudo a lei perdura o direito de castigar, matar e destruir
o seu inimigo e a criação de um inimigo social direciona a lei para a punição daqueles
indivíduos transgressores. Manoel e Sophia estavam imersos na ambiguidade das leis e do
sistema escravagista; enquanto Manoel objetivava a transgressão como forma de rompimento,
Sophia, além de marginalizada socialmente uma negra forra como demonstra o
documento , conspirou contra a vida da mulher de um dos donos de escravizados da
província de Goyaz, que por consequência possuía ferramentas de intensificação e
manipulação das leis, que não poderiam ser questionadas pois não existem leis ou penas
injustas, existem somente indivíduos culpados” (Lourenço, 2001: 86).
O entrecruzamento da violência
Em contrapartida, o sistema punitivo pode ser observado por prismas diversos. Como analisei
acima, os crimes praticados por negros alforriados e escravizados teriam grau de intensidade
máxima até os anos de 1850, aguerridos pelas circunstâncias violentas tanto por parte do
próprio processo escravizador quanto a tentativa, mesmo que tênue, de rompimento da
condição de escravidão. A violência institucionalizada confere a objetivação do sistema penal
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a sujeitos marginalizados em certo grau. Em Goyaz, é possível notar, logo ao lado do Jornal
que apresenta a condenação de Manoel e Sophia, exemplos que possibilitam averiguar tais
situações
7
. O intuito aqui não é concretizar uma análise de merecimento das penas, mas
relacionar os diferentes graus de punição a depender dos indivíduos submetidos a
julgamentos.
Comecemos pelo julgamento de Calisto Antônio Nunes, julgado no Juizo de Paz de Vaivem
em dois de janeiro de 1838: tratava-se de um sujeito casado, natural de Patrocinio, província
de Minas, acusado de homicídio perpetrado contra José da Costa. Em ato confesso, Calisto
diz em sua defesa que não premeditara, que obrara, atenuado de ameaças, e em sua defesa
e foi condenado a sofrer a pena de galez perpetuas e custas, grau médio das penas
estabelecidas no art. 192 do Código Penal
8
. A análise, novamente, de justeza do jornal é
intrigante:
“Não foi justa a decisão do Jury. O crime foi revestido das
circunstâncias agravantes do Artigo 16§§ 1º, 3º, 6º, 13 e 17 do código
penal, circunstancias, que igualmente se achão provados no ventre
dos Autos, por tanto fora de justiça que o réo sofresse o máximo, e
não o médio, das penas do citado Art. 192; máxime porque, tendo
sido este réo condenado a galez perpetuas na Sessão ordinária do
Jury deste termo, no anno próximo passado, por crime de tentativa de
morte, torna-se lhe inteiramente illuzoria huma das penas. Manoel
Antonio Vieira, de idade 36 annos, natural de Piracatu do Príncipe,
cazado, lavrador, pronunciado no juízo de Paz de Vaivem a 2 de
janeiro de 1838 por crime de cumplicidade de homicídio em José da
Costa.”
9
As circunstâncias agravantes apresentadas no relato apresentam as seguintes características do
crime: o inciso do artigo 16 apresenta que o sujeito teria cometido o crime em um local
“ermo” ou no período noturno; o inciso expressa a reincidência do crime pelo indivíduo; o
6º relata a superioridade do sexo, porte de armas e a incapacidade de defesa do agredido; a 13ª
parte aponta o arrombamento de propriedade; e o 17º a presença de mais indivíduos no
acontecimento
10
. A violência pode ser observada por alguns apontamentos, tanto o processo
de contendas e a relação de intercalação entre os sujeitos quanto as diferentes tipificações
penais. Nele não indicações pormenorizadas de características do sujeito, diferentemente
7
O documento do jornal analisado contém comentários de casos julgados na província de Goyaz; logo, os locais
podem variar de acordo com a instância responsável pelos julgamentos. O objetivo da análise é relacionar os
diversos sujeitos julgados na província de Goyaz; dessa forma, é relevante pois demonstra as diferentes formas
do processo judiciário em relação à posição social dos indivíduos.
8
Correio Official (1838) Nº 88, Fundação Biblioteca Nacional (Brasil). BN Digital: Rio de Janeiro.
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Correio Official (1838) Nº 88, Fundação Biblioteca Nacional (Brasil). BN Digital: Rio de Janeiro.
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Código Criminal Do Império Do Brasil (1830), Planalto.
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do que observamos no caso de Sophia e Manoel. Com efeito o julgamento está atrelado não
somente ao crime em José da Costa, mas as interligações de um grupo de sujeitos
responsáveis pela morte do raptor da mulher de Caetano Domingues de Oliveira, na qual
Calisto acompanhara, e alegando uma das testemunhas oculares, que ao levar Calisto até o
local, não pensou que chegasse ao ponto de tirar a vida”. É profícuo notar que os sujeitos
mencionados no caso em análise não passaram por um conjunto de testemunhas como no
julgamento analisado anteriormente.
No sentido da conduta masculina, a figura da mulher no documento é singular. Rabelo (2010:
167) pode nortear essa compreensão, quando afirma que as mulheres no período Imperial em
Goyaz, se aproximavam da concepção que temos hoje de propriedade”. Isso significa que
Acostumado a considerar a mulher como sua propriedade, o machista reagiria quando
sentia essa propriedade ameaçada; isso está imerso em um contexto de dominação política,
que reafirma a submissão feminina como virtude conjugal e a virilidade masculina como
norma de comportamento. Para tanto, o machismo se entremeava nos campos políticos e
educacionais que estruturavam os comportamentos femininos e masculinos, por exemplo,
com a redução da mulher ao papel de mãe (Rabelo, 2010: 168). Outro aspecto que
precisamos reconhecer é a noção de intocabilidade da mulher: os preceitos estabelecidos
quanto ao comportamento feminino estigmatizavam a mulher elas deveriam ser mães de
família o homem, por sua vez, seria o sujeito dotado da liberdade social, dessa forma o
adultério seria julgado de formas diferentes dependendo do sexo. As mulheres seriam vistas
como fáceis; o código machista dava a cada homem o direito de abordar a mulher do
outro ao mesmo tempo em que afirmava a intocabilidade de sua própria mulher(Ibidem).
Podemos observar que a situação se intercala para diferentes níveis de violência; o rapto da
mulher, além de se caracterizar como uma forma de violência em si mesma, aponta como as
figuras masculinas poderiam exercer os preceitos apontados por Rabelo; afinal, o crime não se
tratava da captura provavelmente, forçada da mulher, mas o desfecho violento proferido
por Calisto.
Os conflitos violentos estão inseridos principalmente nas relações ordinárias; a violência
torna-se atenuada por descontentamentos pessoais aliados aos vínculos afetivos e à virilidade
masculina. O comportamento violento pode ser legitimado principalmente se coincidir como
ofensa à honra pessoal e como consequência tea premissa, apontada por Franco (1997: 51),
de destruição do opositor”. E isso pode ocorrer tanto a partir do corpo civil como do corpo
de representação punitiva do Estado, como os inspetores de quarteirão, carcereiros etc.; essa
institucionalização permeaa estrutura da sociedade sertanista. De outra forma, de nenhum
modo o preceito de oferecer a outra face encontra a possibilidade de vigência no código que
norteia a conduta caipira (Ibidem; 54). Os sujeitos do corpo policial, apesar de
representarem o Estado como ofício, expressavam características sociais populares; seu
contato era constante tanto durante o período de trabalho quanto nos momentos de lazer. O
resultado disso são aparições de oficiais em julgamentos.
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No dia 7 de fevereiro de 1838, o carcereiro Thomas de Aquino Ribeiro, homem de cor
preta
11
”, foi condenado a um mês de prisão com multa por ferir Antônio dos Prazeres. Crime
justificável para o Jornal, por se tratar da invasão do ferido à casa de Thomas. Porfírio
Antônio dos Prazeres, homem branco”, acusado de atentar contra a vida de Thomas e sua
mulher, foi condenado por ferir gravemente ambos. Em sua defesa proferiu que obrara em
desafronta de huma grade injuria, que além de provocado fora antes agredido pelos
ofendidos, e finalmente que perpetrara o delicto atenuado de ameaças
12
. Esse caso não
chegou a vias extremas, como nos anteriores, mas consegue incorporar o caráter ordinário da
violência na província de Goyaz e algumas das figuras que os compunham. Ressalta-se que
mesmo com indicações da autodefesa do carcereiro, os ferimentos leves foram considerados
suficientes para sua prisão durante um mês. É possível notar que o grau de contenda entre
sujeitos do mesmo ciclo social se mantém, que o crime se efetivou a partir do contato
prévio.
A violência institucionalizada
A criação de inimigos sociais pode ser considerada outra variável das dinâmicas de violência
exercidas. Principalmente se considerarmos que essa violência é exaltada como forma de
controle de indivíduos marginalizados socialmente. E isso pode ser apreendido pelos meios de
divulgação jornalística, ferramenta capaz de estender a percepção da população sobre
determinados sujeitos. Como abordei parte dos indivíduos escravizados no período
Imperial, e a relação entre violência e rompimento de condição social, me aterei ao processo
de caracterização dos demais sujeitos socialmente.
Podemos iniciar essa discussão a partir da pesquisa de Vieira (2007) em Ordem pública,
catequese e civilização na província de Goiás, onde elabora o esquema de representação das
instituições de controle no século XIX. A forte ambição para construção de uma narrativa
histórica nacional, incentivou os presidentes da província de Goyaz a apresentarem discursos
alinhados ao patriotismo pretendido pela Coroa, enfatizando à manutenção da ordem e da
segurança pública reiterando elogios ao comportamento pacífico dos goianos (Vieira,
2007: 28). Boa parte da preocupação na pacificação se concentrava principalmente quanto aos
ataques e desobediências indígenas, relatados tanto pelo viés da segurança pública, quanto
pela “catequese e civilização” (Ibidem). A autora enfatiza que:
“Os que atentavam contra a segurança pública e contra as
autoridades (índios, categorias populares, homens ambiciosos)
ameaçavam os interesses da pátria e precisavam ser combatidos, pois
o que deveria motivar a ação dos cidadãos era o patriotismo, o zelo
pela justiça e o amor às instituições, representada pelo Imperador.
11
Correio Official (1838) Nº 78, Fundação Biblioteca Nacional (Brasil). BN Digital: Rio de Janeiro.
12
Correio Official (1838) Nº 78, Fundação Biblioteca Nacional (Brasil). BN Digital: Rio de Janeiro.
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Um forte apelo religioso era recorrente nesses discursos, os quais
asseveravam que a segurança individual melhoraria na medida em
que se aprimorassem os costumes e o povo se imbuísse dos princípios
da “santa religião”.
Ibidem: 29
Um dos povos indígenas menos complacentes com o propósito civilizacional catequético
foram os Avá-Canoeiro. Vieira aponta que a resistência dos indígenas fora responsável por
medidas hostis para expulsar esse gentio para o centro das matas(2007; 34). Em agosto de
1838, o Correio Official o presidente da província relata as expedições que marcharam a
partir 1836, contra os selvagens Canoeiro e Cherente. A expedição foi realizada após a falha
do engajamento missionário aos selvagens, que mantinham a postura contra o processo
civilizacional e consideravam relevante a invasão aos povos. Contudo, os conflitos se
estenderam e consequentemente houve perdas consideráveis entre os 271 praças enviados
para a expedição. As expedições mostraram-se caras aos cofres públicos, considerando que no
ano de escrita do relatório, ainda não haviam sido pagas. O presidente culpabilizou os povos
do norte da província pela contração da dívida por inadimplência na arrecadação de
impostos
13
. As estratégias dessas expedições tornavam-se verdadeiros esquemas de guerra
contra os povos indígenas, diz o presidente:
“os povos dos municípios [ilegível] e Porto Imperial abrirão para
levantar huma força, que entrando pelo Duro, e procurando as
Cabeceiras do Rio [ilegível] e explorando a Campanha pela margem
deste Rio chegando até sua confluência no Tocantins, intimidando
assim o Chavante e Cherente.”
14
Os movimentos pensados antecipadamente empreendem-se na forma relacional entre a
população e a notícia, a forma de absorção da notícia dada pelo presidente da província evoca
os elementos de representação patriótica. O teor é de ataque aos indígenas, utiliza-se da
licitude sentimental dos Goyanos, e Goyanos sensíveis
15
para consagração dos pressupostos
legitimadores do ataque. O ponto de interesse das autoridades em construir o sentimento
patriótico foi utilizado como ferramenta política, abrangendo os limites possíveis para se
percorrer uma trilha de violência guiada pelas relações de poder. É perceptível quando
observamos que os elementos sociais que circundam esse espaço de invasão aferida pelos
indígenas, expressam formas diversas de relações. No mesmo relatório:
13
Correio Official (1838) Nº 105, Fundação Biblioteca Nacional (Brasil). BN Digital: Rio de Janeiro.
14
Ibidem.
15
Ibidem.
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“Carolina tem sofrido do cherente, que assaltando a fazenda Moreira
do Caracol, pertencente ao Cidadão Manoel Moreira [ilegível]
matarão o Vaqueiro, hum moço, duas mulheres, e hum escravo, e
conduzirão duas meninas de 10, e de 12 anos: em seguida atacarão a
fazenda de Manoel José de Souza.
16
A invasão dos indígenas pode ser analisada pelo jogo que envolve as relações de poder. Ao
invadirem para roubar a fazenda, supõe-se no documento que havia inércia por parte dos
indivíduos “civilizados”. Por consequência a violência é vista como fator unilateral, o que não
se prova quando observamos a parte anterior a esse trecho. Acredito que a forma mais
delineada para interpretarmos esse documento é admitir que as forças das relações de poder
não são inertes, elas estão prontas para lidar com as armadilhas, com os desdobramentos.
Como aponta Foucault, as vidas estão predispostas às alteridades das forças de poder, logo:
“[...] Em primeiro lugar, do que elas foram em sua violência ou em
sua desgraça singular, nos restaria qualquer coisa se elas não
tivessem, em um dado momento, cruzado com o poder e provocado
suas forças? Afinal, não é um dos traços fundamentais de nossa
sociedade o fato de que nela o destino tome a força da relação com o
poder, da luta com ou contra ele? O ponto mais intenso das vidas,
aquele em que se concentra sua energia, é bem ali onde elas se
chocam com o poder, se debatem com ele, tentam utilizar suas forças
ou escapar de suas armadilhas. As falas breves e estridentes que vão
e vêm entre o poder e as existências as mais essenciais, sem dúvida,
são para estas o único monumento que jamais lhes foi concebido; é o
que lhes dá, para atravessar o tempo, o pouco ruído, o breve clarão.”
Foucault, 2006: 208
As provocações do autor possibilitam parte da compreensão sobre os jogos de poder que
circundam as relações sociais expressas pelo documento. Considerar os indígenas violentos,
bárbaros etc., de acordo com a documentação, é admitir que esses sujeitos não foram
submersos às forças do controle ocidental. A violência reportada pelos jornais supõe que esses
indivíduos não aceitaram os modos de “civilidade” ofertados de forma “pacífica” pela
religião. Logo, os indígenas respondiam conforme sua própria forma de observar as contendas
e relações com os fazendeiros. Os jornais, são os ruídosque representam os indígenas,
sua travessia no tempo passa pelas condições preconcebidas dessas ferramentas de
representação, daqueles que são civilizados fazendeiros e os incivilizados indígenas.
16
Ibidem.
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A própria figura do “fazendeiro” é um ponto de partida das relações de força. A pesquisa de
Motta (1998) Nas Fronteiras do Poder: conflito e direito a terra no Brasil do século XIX, nos
alguns traços da figura do fazendeiro como forma de expansão territorial; porém, não
significa que essas terras faziam parte de uma grande proporção, mas são disputadas pelos
próprios fazendeiros em diversas circunstâncias
17
. Sobretudo, possuir terras nesse período
significava a possibilidade de domínio sobre os sujeitos e isso infere sobre os escravizados,
camaradas e moradores próximos. Nesse sentido, diz a autora, Ser senhor de terras
significava, antes de mais nada, ser senhor (1998: 39). A busca pelas terras é vista pela
autora como busca de poder, de influência política e simbólica sobre os indivíduos que
circundavam esse local. Tendo em consideração que a ambição dos fazendeiros durante o
século XIX é provocada pela dualidade de expansão das terras e do poder, possivelmente o
encurtamento do contato entre indígenas e fazendeiros era cada vez mais intensificado. Os
efeitos desse tipo de relação são os conflitos e a resistência com ou contrao poder, que é
vista como barbárie pelo jornal.
Considerações finais
O intuito dessa pesquisa foi analisar as formas de expressão da imprensa goiana durante o
século XIX; no entanto, me ative a casos que se interligassem no recorte temporal na primeira
metade do século, principalmente. Justamente por considerar a necessidade de um fôlego
empírico, descritivo e conceitual maior. Como observamos, as dinâmicas do século XIX são
permeadas por alteridades jurídicas e repressivas diferentes de acordo com o período, como
foi o caso da revogação da lei que dava margem à pena capital a escravizados, alterada a
partir da década de 1850. Isso varia, em específico, o objetivo principal da pesquisa em
analisar parte da violência em Goyaz que, como observamos, se desdobra pela estrutura
jurídica e social. Portanto, não tenho a intenção de dar a essa parte do texto o sentido de
finalização do tema, pois acredito que o termo estímulo seja mais proveitoso que o de
conclusão.
Em sua particularidade, a província de Goyaz nos faz refletir sobre as principais dinâmicas
entre os sujeitos dominantes e dominados. Observe-se no Caso de Sophia e Manoel que as
instâncias judiciárias foram contra os indivíduos, por considerar a pena justa a escravizados,
invariavelmente o caso de Manoel representa a vontade de rompimento da condição de
escravizado, punido com a força maior do Estado Imperial. Sophia, considerada persuasora,
teve sua vida ceifada por imaginar formas de ruptura da condição de escravizado de Manoel.
17
No sentido da expansão territorial, a autora afirma que: “A expansão territorial não se referia somente às
questões dos limites físicos da fazenda, nem à capacidade de crescimento à questão dos limites físicos da
fazenda, nem à capacidade de crescimento econômico de uma cultura extensiva, como o café. Os conflitos de
terras eram, muitas vezes, provocados por uma nesga de terra, um pequeno quinhão que pouco acrescentaria à
dimensão da área ocupada. Em muitas ocasiões os fazendeiros lutavam entre si ou contra pequenos na defesa de
uma parcela territorialmente insignificante, ou mesmo por um córrego de água ou um caminho abandonado”
(Motta, 1998: 38).
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O jornal é utilizado como ferramenta de respaldo argumentativo além, claro, de todo o
processo judicial que nessa situação contou com testemunhas. A noção de indivíduos
transgressores talvez seja oportuna, que é instigante pensar que esses sujeitos chegaram ao
limite e isso torna a existência do limite algo crucial para a própria ação da transposição
(Paula, 2021: 375); o limite nesse ponto é a própria existência de um senhor de escravos, que
impossibilitava Manoel da condição de liberdade.
Outro limitador que podemos observar é o próprio discurso, que captura as características de
transgressão e as transformam em ferramentas de normatização. A circulação de um discurso
é a forma de sobreposição e articulação dessas informações como verdades e a repressão
ultrapassa a ordem discursiva, ou seja, é a prática do próprio discurso (Ibidem; 377). A
divulgação dos condenados torna-se uma parte do jogo: A notícia policial, por sua
redundância cotidiana, torna aceitável o conjunto dos controles judiciários e policiais que
vigiam a sociedade; conta dia a dia uma espécie de batalha interna(Foucault, 2014: 281).
As formas de representação da imprensa tornam-se seletivas, elas são responsáveis por
anunciar a guerra aos indígenas, a indocilidade dos escravizados e tornar os senhores
merecedores da vitória. A narrativa mostra ainda que o jornal fora responsável por
salvaguardar os princípios morais, mesmo na ambiguidade das estratégias de controle
expressas nas entrelinhas.
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Ruan Lucas Marciano
Licenciado em História pela Universidade Estadual de Goiás (UEG). Mestrando pelo
Programa de Pós-graduação em História (PPGH) da Universidade Federal de Goiás (UFG) e
bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG).