Sabrina Costa Braga e Murilo Gonçalves
A MULTIDIRECIONALIDADE DA MEMÓRIA DO HOLOCAUSTO E DA DITADURA MILITAR
BRASILEIRA EM K. RELATO DE UMA BUSCA
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A MULTIDIRECIONALIDADE DA MEMÓRIA DO HOLOCAUSTO E DA
DITADURA MILITAR BRASILEIRA EM K. RELATO DE UMA BUSCA
THE MULTIDIRECTIONALITY OF THE MEMORY OF THE HOLOCAUST AND
THE BRAZILIAN MILITARY DICTATORSHIP IN K. RELATO DE UMA BUSCA
LA MULTIDIRECCIONALIDAD DE LA MEMORIA DEL HOLOCAUSTO Y LA
DICTADURA MILITAR BRASILEÑA EN K. RELATO DE UMA BUSCA
Sabrina Costa Braga
sabrinacostabraga94@gmail.com
Universidade Federal de Goiás
Murilo Gonçalves
murilogoncalves.hist@gmail.com
Universidade Federal de Goiás
Resumo
O artigo explora o conceito de memória multidirecional a partir da interação entre a memória
do Holocausto e a memória da ditadura militar brasileira tomando como exemplo a obra
fictícia K. Relato de uma busca de Bernardo Kucinski. A análise aborda a fronteira entre
história e ficção, considerando o enredamento na narrativa histórica e sua relação com eventos
traumáticos, como o Holocausto. Assim, destacamos o testemunho como uma forma
prevalente de memória que emerge das experiências traumáticas e apresenta tanto na
historiografia quanto na literatura. No caso dos traumas históricos, a linguagem muitas vezes
se revela inadequada para transmitir completamente determinadas experiências, levando à
necessidade de novas estratégias de representação, de modo que a ficção desempenha um
papel crucial na comunicação de certas dimensões da experiência histórica e na elaboração do
passado.
Palavras-chave: Memória multidirecional; Holocausto; Ditadura Militar Brasileira.
Abstract
The article explores the concept of multidirectional memory based on the interaction between
the memory of the Holocaust and the memory of the Brazilian military dictatorship, taking as
an example the fictional work K. Relato de uma Busca by Bernardo Kucinski. The analysis
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addresses the border between history and fiction, considering the emplotment in the historical
narrative and its relationship with traumatic events, such as the Holocaust. Thus, we highlight
testimony as a prevalent form of memory that emerges from traumatic experiences and
features in both historiography and literature. In the case of historical traumas, language often
proves inadequate to fully convey certain experiences, leading to the need for new
representation strategies, so fiction plays a crucial role in communicating certain dimensions
of historical experience and in the process of working-through the past.
Keywords: Multidirectional memory; Holocaust; Brazilian Military Dictatorship.
Resumen
El artículo explora el concepto de memoria multidireccional a partir de la interacción entre la
memoria del Holocausto y la memoria de la dictadura militar brasileña, tomando como
ejemplo la obra de ficción K. Relato de uma Busca, de Bernardo Kucinski. El análisis aborda
la frontera entre historia y ficción, considerando el emplazamiento en la narrativa histórica y
su relación con eventos traumáticos, como el Holocausto. Así, destacamos el testimonio como
una forma prevalente de memoria que emerge de experiencias traumáticas y que aparece tanto
en la historiografía como en la literatura. En el caso de los traumas históricos, el lenguaje a
menudo resulta inadecuado para transmitir plenamente ciertas experiencias, lo que lleva a la
necesidad de nuevas estrategias de representación, por lo que la ficción juega un papel crucial
en la comunicación de ciertas dimensiones de la experiencia histórica y en el proceso de
elaboración del pasado.
Palabras clave: Memoria multidireccional; Holocausto; Dictadura militar brasileña.
Introdução
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O conceito de “memória multidirecional” é central para esta análise, pois parte da
contraposição à noção de que a memória do Holocausto poderia ofuscar a memória da
escravidão ou do colonialismo. Rothberg (2009: 5-9), ao cunhar tal conceito, parte da questão
de como as histórias de diferentes grupos se relacionam de acordo com as circunstâncias
presentes, ou seja, de como diferentes histórias se confrontam na esfera pública. Pensar pela
via da memória multidirecional é, assim, fundamental, pois permite destacar a interação entre
diferentes memórias históricas e considerar uma série de intervenções através das quais
múltiplos passados traumáticos são trazidos para um presente pós-Holocausto heterogêneo e
mutável.
A memória coletiva age em uma via de mão dupla, por isso multidirecional: ao mesmo tempo
em que o Holocausto possibilitou a articulação de outras histórias traumáticas, a memória
pública do Holocausto emergiu (e ressurgiu) em relação a acontecimentos do pós-guerra que à
primeira vista estavam desconectados. Considero, portanto, o Holocausto como um
paradigma de transferências dinâmicas que ocorrem entre diferentes lugares e períodos no ato
de recordação. O Holocausto pode ser visto como um tema alheio à realidade sociocultural
brasileira, mas a literatura permite pensar nos entrelugares que unem os escritos sobre o
Holocausto e sobre o trauma nacional da ditadura militar.
O problema da relação entre realidade histórica, ficção e memória pode ser iluminado pelas
experiências traumáticas que tornam necessário que os indivíduos e as sociedades negociem
as memórias e explorem como o passado é continuamente reinterpretado e reapropriado no
presente. Neste artigo, a relação mencionada será investigada pela via da multidirecionalidade
entre a memória do Holocausto e a memória da ditadura militar brasileira, examinando uma
obra ficcional contemporânea, K. Relato de uma busca, de Bernardo Kucinski. Uma das
questões que o exame de obras do tipo pode responder é como e em que medida
representações literárias ficcionais podem comunicar as especificidades do caso brasileiro ao
mesmo tempo em que ilustram o alcance da memória do Holocausto na Literatura Mundial.
Trauma, história, memória e literatura
As fronteiras entre a história e a ficção foram amplamente exploradas desde a antiguidade
clássica. Mais recentemente, esse debate voltou a ser pautado por teóricos da história, a partir
da preocupação com o status científico da disciplina e da complexa relação entre a história
contada e a realidade histórica. A exemplo da marcante obra de Hayden White e de todas as
discussões por ela geradas na segunda metade do século XX, o debate parece ainda não
promover algum tipo de consenso. White levantou questões acerca da asserção que
considerou injustificada de que os historiadores têm acesso privilegiado ao passado. Essas
colocações perturbaram historiadores que ainda depositavam certa confiança na objetividade
histórica e no realismo histórico.
A elaboração de enredo, de acordo com White (2008: 23-26) se refere à tentativa de
explicação histórica na qual a narrativa histórica pode assumir algumas formas como
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romance, comédia, sátira ou tragédia
1
. Essas formas correspondem a uma percepção estética
do historiador e se ligam à presença de elementos literários na escrita da história. É dessa
maneira que White aponta para uma relatividade em toda a representação de um fenômeno
histórico. A relatividade se como função da linguagem (figure) e da pré-figuração (pre-
figure) utilizada pelo historiador em seu trabalho de fazer do passado um objeto passível de
explicação e compreensão.
O problema colocado por White em relação à tropologia e ao enredamento (emplotment) na
história ganha novo corpo quando associado ao estudo do Holocausto. A pergunta
fundamental dessas discussões é aquela acerca dos limites de representação
2
, ou seja, se
existiria algum limite sobre o tipo de história (story) que pode ser contado sobre um passado
traumático como o Holocausto. Estabelecer esses limites não pressupõe apenas uma escolha
historiográfica, mas também ética que se liga à problemática da relativização e até mesmo da
negação do próprio passado.
Para White, o Holocausto seria um exemplo do que ele chamou de evento modernista. O
Holocausto seria um evento modernista à medida em que se mostraria de tal forma anômalo e
inimaginável que os modos de representação realista e clássico teriam se mostrado
inadequados ao representá-lo. Dessa maneira, para White (1996: 21), o que esteve em questão
nunca foram os fatos (se a Shoah aconteceu ou não), mas os significados possíveis a partir dos
fatos, de forma que a questão não seria mais metodológica do que de representação.
A obra Maus é um dos exemplos usados por White (1992: 41) para criticar qualquer base
estabelecida a fim de julgar um relato como inaceitável. A HQ narra, apresentando os eventos
como uma sátira, uma história que não é uma história tradicional, mas representa eventos
reais do passado ou, pelo menos, eventos representados como tendo verdadeiramente
ocorrido. Ddecorre o incômodo de Spiegelman (1991) ao ter sua obra incluída na lista de
livros classificados como “ficção”, afinal, se por ficção se quer dizer que uma obra não é
factual, então isso poderia significar a desqualificação das memórias de seu pai nas quais ele
se baseou para escrever. Para LaCapra (1998: 146), a sugestão irônica de Spiegelman de que o
livro fosse categorizado como “não-ficção” explora o fato de a obra não ser inventada (made
up), embora seja obviamente criada (made) e modelada. Assim, em relação a Maus, é atestado
o seu estado híbrido, entre gêneros, sem de fato se resumir a qualquer um deles.
O Holocausto, portanto, não gera na historiografia apenas a necessidade de refletir sobre a
representação em termos de fazer escolhas narrativas éticas, mas também acerca de como
lidar e incorporar outras formas narrativas e outras modalidades de relacionamento com o
1
White identificou esses quatro modos de elaboração de enredo seguindo a teoria literária de Northrop Frye.
Ver: Frye, Northrop. (1957). The Anatomy of Criticism: Four Essays. Princeton: Princeton University Press.
2
Os impasses encontrados nas discussões sobre as (im)possibilidades de representação da Shoah deram origem
ao congresso The extermination of the jews and the limits of representation, realizado na UCLA (University of
California, Los Angeles) no ano de 1990. O congresso contou com a presença de renomados historiadores norte-
americanos e europeus e deu origem ao livro, de organização de Saul Friedländer, Probing the Limits of
Representation, lançado em 1992. Ao questionar a possibilidade de representar e historicizar a Shoah sem
desrespeitar o seu lugar histórico, Friedländer cunhou o conceito de evento limite em um contexto visto como de
emergência de prerrogativas colocadas como pós-modernas na historiografia.
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passado. O próprio conceito de evento limite (Friedländer) carrega em si essa duplicidade,
pois inclui as reflexões sobre as formas pelas quais as escolhas éticas se incorporam à
historiografia, ou seja, sobre se um evento deve ser representado e qual a forma mais
adequada para isso. Por outro lado, ele inclui também a reflexão sobre o desafio imposto pela
Shoah às categorias e aos conceitos usualmente utilizados para representar um evento, ou
seja, à capacidade de se representar ou não de determinadas formas.
É pela via do testemunho que a historiografia tem de se haver inevitavelmente com a
memória. A invasão do campo da história pela memória foi admissível a propósito da Shoah,
evento instaurador da urgência pela conciliação entre a exigência de memória e a necessidade
da história. Resumidamente, o testemunho, como uma modalidade de memória, veio à tona a
partir de catástrofes e fez necessária a reconsideração da relação entre a narrativa e o real
como aquilo que resiste à representação e que, paradoxalmente, na tentativa de alcançar a
realidade, precisa recorrer à ficção.
Os testemunhos de eventos traumáticos configuram memórias falhas e incompletas que
podem escapar ao relato coerente. É por isso que os testemunhos de sobreviventes do
Holocausto não carregam o tom de denúncia típico dos relatos descritivos realizados
durante ou logo após os eventos dos quais tratam, como também reflexões quanto à
fragmentação da memória traumática, a problematização dos limites de representação e o
lugar da imaginação (Antelme, 2013) na tentativa de elaboração do passado.
Na “era do testemunho” (Wieviorka), o testemunho se tornou o gênero prevalente de não-
ficção. Sendo baseado em memórias, emergiu como um modo privilegiado de acesso ao
passado e suas ocorrências traumáticas (LaCapra, 1998: 11). Acontece que o testemunho se
localiza em um entrelugar que perpassa a história, a memória e a literatura, de modo que
evidencia a inviabilidade da oposição radical entre história e ficção. As dificuldades e
impossibilidades que acompanham a representação de eventos traumáticos exigem do
historiador um novo olhar e, nesse sentido, os testemunhos podem se configurar em maneiras
particularmente eficazes de se aproximar da compreensão da experiência das vítimas e, ao
mesmo tempo, fazer perceber a nossa incapacidade de a compreender totalmente. As lacunas
deixadas pela Shoah na memória das vítimas são também a carência de coerência na história e
é precisamente essa a essência do trauma.
Os testemunhos, como um exercício de memória traumática, se localizam na impossibilidade
de corresponder completamente à tentativa do sobrevivente de contar “tal como aconteceu”.
Haverá sempre uma lacuna entre o que se tem para contar e a linguagem disponível (Levi,
1988; Antelme, 2013). É precisamente por isso que para além do testemunho dos
sobreviventes com a presença inevitável da ficção devem ser consideradas também as
produções literárias como possibilitadoras de novas estratégias de representação e elaboração
do passado.
K. Relato de uma busca
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No início de sua obra, Bernardo Kucinski nos alerta: “tudo neste livro é invenção, mas quase
tudo aconteceu” (Kucinski, 2016). Em entrevista a Luciano Gallas (2014), quando
perguntado acerca do teor ficcional da obra, ele responde que “a matéria-prima é
autobiográfica, a narrativa é ficcional”. O narrador de K. Relato de um Busca (2011), de
Bernardo Kucinski, se envolve com uma projeção imaginária da memória de seu pai
imigrante judeu em busca de uma filha brasileira (irmã do narrador) desaparecida durante a
ditadura. Somos confrontados com a relação ficcional e transgeracional com a memória do
seu pai. Não o imediato “eu me lembro”, mas uma espécie de “eu me lembro através dele” em
que se constrói um paralelo entre a perseguição antissemita na Europa e o desaparecimento de
ativistas revolucionários durante a ditadura brasileira.
Ana Rosa Kucinski, filha de Majer Kucinski e Ester Kucinski, nasceu em 1942 na cidade de
São Paulo. Ana Rosa foi professora no Instituto de Química da Universidade de São Paulo
(USP) e casada com o físico Wilson Silva, sendo ambos militantes da Ação Libertadora
Nacional (ALN). Ana Rosa era filha de imigrantes judeus poloneses e irmã de Bernardo
Kucinski. Ela desapareceu em 22 de abril de 1974 (CNV). Como implica a própria utilização
do termo “desaparecimento” para tratar de um fenômeno comum às vítimas das ditaduras
militares na América Latina, a família nunca obteve respostas concretas sobre a morte de Ana
Rosa. Berta Waldman, em comentário incluído na capa de uma das edições de K. Relato de
uma Busca, define o livro de Bernardo Kucinski como “além do testemunho de um período
terrível de nossa história”, também “a tão almejada lápide de Ana Rosa”.
K. Relato de uma busca foi o romance de estreia de Bernardo Kucinski na ficção, aos 74 anos.
Há, segundo Seligmann-Silva (2020: 192), um uso irônico da noção de ficção que responde a
uma situação política complexa que parece exigir a distinção, de qualquer forma impossível,
entre a ficção e o realismo dos fatos. O relatório da Comissão Nacional da Verdade sobre o
caso de Ana Rosa expõe documentos da longa e labiríntica busca de Majer Kucinski pela
filha. O livro de Bernardo Kucinski conta essa história, a história de um pai em busca de sua
filha, de um homem que recorre a autoridades nacionais e estrangeiras por anos sem descansar
e sem obter respostas satisfatórias. O livro, apesar de não ser narrado por ele, conta a saga de
K. em busca de sua filha desaparecida durante a ditadura. Se intercalam capítulos com
retornos temporais que nos explicam quem era essa filha, como era a sua relação com a
família, bem como capítulos que se compõem por incursões acerca de como determinados
eventos poderiam ter ocorrido de acordo com as esparsas informações concretas que a família
teve acerca do destino de Ana Rosa.
As referências à Shoah partem de duas fontes distintas: tanto o lugar ocupado pelo Holocausto
na memória coletiva global que leva a quase inevitáveis referências quando se dedica a tratar
de outros eventos também traumáticos; quanto ao fato de o personagem principal da obra,
baseado em Majer Kucinski, ser um imigrante judeu, falante de iídiche, que veio para o Brasil
antes da Segunda Guerra Mundial, em 1935.
A língua iídiche é por si mesma uma personagem da obra: quando percebe o sumiço da filha e
o calvário de K. se inicia, ele se questiona se não deveria ter dado mais atenção aos vivos em
vez de se dedicar a essa “língua-cadáver”, a essa “língua morta que poucos velhos falam”
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(Kucinski, 2016: 16-17). A nota de rodapé do próprio autor é explicativa acerca do que se
que quer dizer com “língua morta”. O iídiche se desenvolveu a partir da cultura asquenazita,
principalmente na Europa Central e Oriental, teve seu ápice na literatura no século XX e
sendo a língua característica dos judeus da diáspora, unindo uma sintaxe germânica e o
alfabeto hebraico entrou em declínio após o Holocausto e a morte de grande parte de seus
falantes e após a escolha dos fundadores do Estado de Israel pelo uso do hebraico. Majer
Kucinski foi grande estudioso da literatura em iídiche e, na obra, esse interesse aparece de
forma exacerbada e significativa da marca do sentimento de culpa do personagem K., da
atenção que ele supostamente deveria ter dado mais à filha, como ela mesma ressalta em carta
encontrada (2016: 48). A devoção à literatura iídiche é a causa encontrada por K. para não ter
percebido que sua filha entrava para a militância política ou não saber sequer que ela havia se
casado. Assim, quando ele se sente enganado por informantes diversos, pode concluir em
iídiche “ich bin gevein a groisser idiot” (eu fui um grande idiota) (2016: 36).
Nos testemunhos da Shoah, a incapacidade da linguagem de corresponder ao que os
sobreviventes tinham para contar é tema recorrente. Essa aparente impossibilidade foi descrita
por Primo Levi (1988: 182) ao afirmar que, caso os campos de extermínio tivessem durado
mais tempo, teria nascido “uma nova, áspera linguagem”. Pode ser que essa linguagem seja
justamente a não-linguagem de Hurbinek, a criança sobre quem nada sabiam, um nada, um
filho da morte, um filho de Auschwitz”, cujas primeiras palavras todos ao redor tentavam
adivinhar a que língua europeia pertenceria, mas que permaneceram secretas (Levi, 1997: 28-
29).
K. também cogitou registrar por escrito as impressões e pensamentos tão fortes da busca por
sua filha, principalmente do momento marcante em que foi tão bem recebido por um líder da
Igreja Católica. Para se redimir de ter dado tanta atenção à literatura iídiche, escreveria agora
sua obra maior “para lidar com seu próprio infortúnio”, mas ao tentar reunir suas esparsas
anotações em uma narrativa coerente, “era como se faltasse o essencial”, como se “as palavras
[...] escondessem ou amputassem o significado principal”, “não conseguia expressar sua
desgraça na semântica limitada da palavra” (Kucinski, 2016: 127) e se pergunta se essa seria
uma limitação da língua iídiche, se esse povo tão maltratado não conseguia expressar
sofrimento na sua própria ngua” (2016: 127). Por fim, K. conclui que o impedimento era de
ordem maior, moral e não apenas linguística, que ele não seria capaz de fazer da tragédia de
sua filha objeto de criação literária. Por isso, escreve sobre a tragédia familiar não em iídiche,
mas em hebraico às netas em Israel (2016: 128).
O livro de memórias nunca composto por K. seria uma possibilidade daquilo que se torna
posteriormente o livro de Bernardo Kucinski: uma lápide para Ana Rosa, nome nunca
mencionado no livro de ficção. um episódio em que K. procura um rabino para colocar
uma matzeivá (lápide judaica) para a filha no cemitério israelita do Butantã em São Paulo.
Mas como poderia haver lápide sem corpo? Para K. a falta da matzeiequivaleria a dizer que
a filha não existiu e retrucou o impedimento da falta do corpo argumentando que naquele
mesmo cemitério havia uma grande lápide em memória dos mortos do Holocausto sem
nenhum corpo, ao qual é repreendido imediatamente, pois “nada se compara ao Holocausto”,
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que é “um e único, o mal absoluto” (Kucinski, 2016: 59). K. não discorda, mas retrucou que,
para ele, a tragédia da filha era uma continuação do Holocausto.
As comparações entre outros traumas históricos e a Shoah incorre no risco da banalização do
Holocausto e também naquilo que Enzo Traverso definiu como “usos apologéticos da
memória da Shoah”, como um excesso de memória que neutralizaria o potencial crítico da sua
memória (Traverso, 2012: 110) se ligando àquilo que Rüsen tratou sob a denominação de usos
e abusos do passado. Por outro lado, o lugar ocupado pelo Holocausto na memória coletiva
global incitou as discussões a respeito e a própria cunhagem do termo genocídio que se aplica
a tantos outros casos. Em relação à ficção produzida acerca da ditadura militar brasileira, a
Shoah aparece como o trauma paradigmático, um caminho percorrido por tantos outros e
pela via do qual se poderia encontrar formas de elaborar o próprio trauma, presente e, de
várias formas, tão distante do primeiro. Por exemplo, em O irmão alemão (2014), de Chico
Buarque: embora o narrador não tenha ascendência judaica conhecida, ele fantasia um
passado judeu para seu desconhecido irmão alemão ao mesmo tempo em que seu outro e
conhecido irmão brasileiro desaparece durante a ditadura. No final, ele chega a cogitar a
possibilidade de serem a mesma pessoa, reunindo os dois traumas históricos.
Onze dias após o sumiço da filha, K. encontrava-se extremamente angustiado e sonhando com
referências ao próprio passado em particular e às desgraças do povo judeu em geral, como a
expulsão da Espanha. A confirmação de que ela não somente não atendia a suas ligações,
como realmente estava desaparecida, veio quando ele tomou coragem para procurá-la, a
começar pelo seu local de trabalho. No trigésimo dia do desaparecimento, soube de uma
reunião com familiares de desaparecidos políticos convocada por um arcebispo. O termo,
existente e muito comumente utilizado no caso das ditaduras na América Latina, o tom do
quão insólita era a busca dos familiares por seus “desaparecidos”. Nesse ponto, pela primeira
vez na obra aparece a comparação entre a Shoah e a ditadura militar:
Até os nazistas que reduziam suas vítimas a cinzas registravam os
mortos. Cada um tinha um número, tatuado no braço. A cada morte,
davam baixa num livro. É verdade que nos primeiros dias da invasão
houve chacinas e depois também. Enfileiravam todos os judeus de
uma aldeia ao lado de uma vala, fuzilavam, jogavam cal em cima,
depois terra e pronto. Mas os goim de cada lugar sabiam que os seus
judeus estavam enterrados naquele buraco, sabiam quantos eram e
quem era cada um. Não havia a agonia da incerteza; eram execuções
em massa, não era um sumidouro de pessoas (Kucinski, 2016: 16).
Não é de se espantar que a passagem tenha gerado desconforto a um sobrevivente do
Holocausto que porventura lesse a obra, ou mesmo a algum estudioso da perseguição nazista
que percebesse a inacurácia da afirmação. Aqui entra a força da ficção: o autor fala em nome
de um personagem com uma ligação particular com a Shoah não apenas como todos os judeus
a têm, mas como alguém diretamente afetado, apesar de não ser ele mesmo um sobrevivente.
No entanto, a sua tragédia naquele momento era, para ele, mais angustiante. A questão é
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retórica, chama a atenção para a realidade local, para o trauma ainda não elaborado e para a
memória do trauma que, por mais recorrentemente que insurja, ainda está em disputa no
cenário da opinião pública brasileira. Em momento posterior, K. se indigna ao se deparar com
o nome Costa e Silva na Ponte Rio-Niterói e é colocada a questão de que na Alemanha, jamais
uma rua levaria o nome de Goebbels (Kucinski, 2016: 113).
Em edição da extinta editora Cosac Naify, a obra de Bernardo Kucinski foi acrescida de dois
contos extras que mostram que Bernardo Kucinski não estava alheio à mencionada inacurácia.
O primeiro desses contos se intitula A Visitante. O personagem do conto, que é também o seu
autor, está em casa, dez dias após o lançamento do livro preocupado com a recepção e a à
primeira vista indiferença do público e da crítica, ao que bate à sua porta uma senhora
desconhecida que diz querer falar sobre o livro. A senhora, uma idosa, carrega na mão o seu
livro e destaca ser um livro “forte e bem escrito”, mas que contém “um erro muito grave que
precisa ser corrigido” (Kucinski, 2014: 127). O erro ao qual ela se refere é sobre ele ter escrito
que os alemães registravam todos os mortos quando, na verdade, só uma minoria teve o nome
em alguma lista, fato que ela procura comprovar mostrando o próprio número tatuado em
Auschwitz em seu braço. A sobrevivente cita os cálculos feitos pelo Yad Vashem na busca
interminável por encontrar mais nomes e conta sobre como apenas em Auschwitz as pessoas
eram marcadas dessa forma e sobre sua irmã e seus sobrinhos que não estão em nenhuma
lista, portanto não puderam ser devidamente contados e identificados, pois não qualquer
registro.
Dois pontos centrais para esta análise são tratados de forma muito clara nesse curto conto: a
questão da ficção e a da relação entre a ditadura militar e a Shoah. O autor argumenta:
“senhora Regina, o meu livro é uma ficção, entendo sua reclamação, mas na ficção a gente
pode inventar, meu livro trata de uma moça, e nem o nome dela aparece, é tudo invenção”
(Kucinski, 2014: 128). Ao que a senhora responde, impassível, que “invenção coisa alguma, o
nome dela não está no livro, mas todos sabem quem foi ela, e o holocausto também todos
sabem o que foi, não tem nada de invenção, são fatos reais” (2014: 128). O diálogo se segue
com ele tentando explicar que os escritores às vezes podem torcer um pouco os fatos reais,
usam da licença poética, para lhes dar mais força, que sua intenção foi apenas ressaltar a
violência do desaparecimento e que o “livro é sobre a ditadura no Brasil, não é sobre a
Segunda Guerra” (2014: 129).
Considerações Finais
As explorações subjetivas e testemunhais da memória em sua forma ficcional geralmente não
têm muito a acrescentar ao conhecimento factual histórico, mas podem indicar como o
passado é compartilhado e mobilizado e como impacta as construções identitárias sem
negligenciar o que representa em relação aos usos públicos e políticos no presente. Uma das
questões que emerge dos debates sobre a historiografia do Holocausto é se a história está
implicada em dispositivos ficcionais ao narrar o passado. Essa questão pode ser melhor
respondida se não se assumir que o ficcional implica o falso, o que nos permite perceber que a
ficção pode ser a única forma de comunicar certas dimensões da experiência histórica,
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incluindo os efeitos dessa história na própria linguagem. A historiografia pode ir até certo
ponto. Como forma de organizar as experiências conferindo-lhes unidade de sentido, a
narrativa pode ser condição de sobrevivência. Nesse sentido, a ficção tem o seu papel na
comunicação do sofrimento causado pelos traumas históricos e a literatura fornece a estrutura
narrativa para um acerto de contas ético e necessário com passados que permanecem sem
processamento. Tal cálculo requer uma abordagem multidirecional para histórias que se
cruzam.
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Wieviorka, A. (2006). The era of the witness. New York: Cornell University Press.
BIOGRAFIA
Sabrina Costa Braga e Murilo Gonçalves
A MULTIDIRECIONALIDADE DA MEMÓRIA DO HOLOCAUSTO E DA DITADURA MILITAR
BRASILEIRA EM K. RELATO DE UMA BUSCA
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Drª. Sabrina Costa Braga
Professora Substituta na Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás. Doutora em
História pela Universidade Federal de Goiás (UFG) com período de pesquisa na Freie
Universität Berlin. É editora executiva da Revista de Teoria da História.
Dr. Murilo Gonçalves
Professor Substituto da Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás (UFG).
Possui graduação, mestrado e doutorado em História pela Universidade Federal de Goiás,
com estágio de pesquisa na Freie Universität Berlin.