Rodrigo de Freitas Costa
ARTICULAÇÕES ENTRE TEATRO, EDUCAÇÃO E ENSINO POR MEIO DA EXPERIÊNCIA
CÊNICA DO GRUPO GALPÃO (BELO HORIZONTE-BRASIL)
40
ARTICULAÇÕES ENTRE TEATRO, EDUCAÇÃO E ENSINO POR MEIO DA
EXPERIÊNCIA CÊNICA DO GRUPO GALPÃO (BELO HORIZONTE-BRASIL)
ARTICULACIONES ENTRE TEATRO, EDUCACIÓN Y ENSEÑANZA A
TRAVÉS DE LA EXPERIENCIA ESCÉNICA DEL GRUPO GALPÃO (BELO
HORIZONTE, BRASIL)
ARTICULATIONS BETWEEN THEATER, EDUCATION AND TEACHING
THROUGH THE SCENIC EXPERIENCE OF THE GALPÃO GROUP (BELO
HORIZONTE-BRASIL)
Rodrigo de Freitas Costa
Universidade Federal do Triângulo Mineiro
rodrigo.costa@uftm.edu.br
Resumo
O processo educacional e o ensino de História no Brasil enfrentam desafios complexos,
inclusive porque a aprendizagem em sala de aula é multifacetada e necessita não apenas de
abordagens metodológicas consistentes, mas também de convergências com o ambiente social
dos estudantes. Este artigo se propõe a articular o debate sobre as linguagens artísticas
realizadas no campo historiográfico com as discussões sobre educação, com foco no ensino de
história. Para tanto, recuperamos um dos trabalhos cênicos desenvolvidos pelo Grupo Galpão,
companhia teatral da cidade de Belo Horizonte, realizado ao longo de 2013, com o objetivo de
pensar as possibilidades do teatro como meio de reflexão sobre os limites do processo
educacional e as potencialidades que as artes podem oferecer. Contudo, este texto não utiliza o
teatro como metodologia para ser utilizada em sala de aula, o que é importante e possui ampla
bibliografia especializada, mas não é nosso foco. Aqui o teatro e a elaboração cênica são vistos
como possibilidades de reflexão sobre as noções de História, de Ensino e, por fim, de Educação.
Procuramos, com isso, oferecer aos leitores uma de reflexão sobre o processo educacional
sustentada pelos meandros do processo criativo que envolve as artes, no caso, o teatro.
Palavras chave: Linguagens Artísticas Teatro Ensino de História processo educacional
infância.
Resumen
O processo educacional y la enseñanza de Historia en Brasil enfrentan desafíos complejos,
especialmente porque el aprendizaje en el aula es multifacético y requiere no solo enfoques
metodológicos consistentes, sino también convergencias con el entorno social de los
Rodrigo de Freitas Costa
ARTICULAÇÕES ENTRE TEATRO, EDUCAÇÃO E ENSINO POR MEIO DA EXPERIÊNCIA
CÊNICA DO GRUPO GALPÃO (BELO HORIZONTE-BRASIL)
41
estudiantes. Este artículo tiene como objetivo articular el debate sobre las expresiones artísticas
realizadas en el campo historiográfico con las discusiones sobre educación, centrándose en la
enseñanza de la historia. Para ello, recuperamos uno de los trabajos escénicos desarrollados por
el Grupo Galpão, una compañía teatral de la ciudad de Belo Horizonte, realizado a lo largo de
2013, con el propósito de reflexionar sobre las posibilidades del teatro como medio para pensar
los límites del proceso educativo y las potencialidades que las artes pueden ofrecer. Sin
embargo, este texto no utiliza el teatro como metodología para ser utilizada en el aula, lo cual
es importante y tiene una amplia bibliografía especializada, pero no es nuestro enfoque. Aquí,
el teatro y la elaboración escénica se ven como posibilidades de reflexión sobre las nociones de
Historia, Enseñanza y, finalmente, Educación. Con esto, buscamos ofrecer a los lectores una
reflexión sobre el proceso educativo sustentada en los entresijos del proceso creativo que
involucra las artes, en este caso, el teatro.
Palabras clave: Artes Escénicas - Teatro - Enseñanza de Historia - Proceso Educativo -
Infancia.
Abstract
The educational process and the teaching of history in Brazil face complex challenges, not least
because learning in the classroom is multifaceted and requires not only consistent
methodological approaches, but also convergences with the students' social environment. This
article aims to link the debate on artistic languages in the historiographical field with
discussions on education, with a focus on history teaching. To this end, we revisit one of the
plays developed by Grupo Galpão, a theater company from the city of Belo Horizonte, in 2013,
with the aim of thinking about the possibilities of theater as a means of reflecting on the limits
of the educational process and the potential that the arts can offer. However, this text does not
use theater as a methodology to be used in the classroom, which is important and has ample
specialized bibliography, but is not our focus. Here, theater and stage production are seen as
possibilities for reflection on the notions of history, teaching and, ultimately, education. With
this, we try to offer readers a reflection on the educational process supported by the intricacies
of the creative process that involves the arts, in this case, theater.
Key words: Artistic Languages - Theatre - History Teaching - educational process - childhood.
Rodrigo de Freitas Costa
ARTICULAÇÕES ENTRE TEATRO, EDUCAÇÃO E ENSINO POR MEIO DA EXPERIÊNCIA
CÊNICA DO GRUPO GALPÃO (BELO HORIZONTE-BRASIL)
42
Introdução
A educação e o Ensino de História se apresentam para pesquisadores e professores com muitos
desafios. No ambiente escolar, geralmente, são várias as dúvidas e incertezas que rondam os
professores. É difícil, por exemplo, para um país múltiplo como o Brasil estabelecer um
caminho seguro voltado para o ensino em todo território nacional, o que se acentua quando
levamos em conta as diferenças socioeconômicas regionais e pessoais. Esse é apenas um dos
problemas que aponta para a complexidade da aprendizagem dos conteúdos no processo
educativo e que pode gerar, em último caso, a dificuldade por parte dos próprios professores
em aferirem o conhecimento ensinado. É complexo definir, do ponto de vista metodológico, o
processo de aprendizagem que ocorre no ambiente da sala de aula. Por isso, acreditamos que
esse debate não deve ser encarado apenas pelos profissionais que atuam diretamente na
Educação Básica. No caso do ensino de História, ele envolve a concepção de História presente
no ensino escolar e sua articulação com o ambiente formativo de jovens e adolescentes.
Portanto, a situação é complexa não apenas pelas dificuldades cotidianas do processo de
aprendizagem, mas também pela forma como o conhecimento histórico é construído e entra em
contato com os alunos.
Partindo da importância da relação entre linguagens artísticas e educação, mais especificamente
por meio das relações entre História e Teatro, este artigo pretende recuperar a prática teatral
para problematizar a noção de História no ensino escolar, assim como as dificuldades que ela
pode apresentar para estudantes e professores. Para tanto, além da discussão teórica pertinente
ao tema, recuperaremos uma experiência cênica do Grupo Galpão
1
com o objetivo de apontar
as possibilidades que as artes podem oferecer ao processo de aprendizagem. Porém, cabe
destacar que este texto não pretende fazer uma discussão sobre o uso do teatro em sala de aula,
mas recuperar a prática cênica como forma de pensar os limites e as possibilidades da ação
docente na área de História.
Educação Histórica como campo de conhecimento e produção de sentidos
Um ponto central para reflexões sobre o processo educacional e o ensino de História é a
necessidade de compreender cuidadosamente o processo cognitivo de construção de
conhecimento histórico. Como, todos nós, desde a infância, passando pela escola e chegando à
vida adulta, elaboramos nossas percepções sobre a historicidade? Por valorizar a ideia de que
pensar historicamente é uma forma de interpretar a ações dos homens no tempo, esse
questionamento se torna importante.
1
Tendo iniciado sua carreira em 1982, o Galpão se notabilizou por meio da realização de espetáculos de palco e
rua, muitos deles usando elementos circenses pernas de pau e malabares , excelência musical produzida pelos
atores da companhia e qualidade cênica, confirmada pelo sucesso de público e crítica da maioria de seus
espetáculos. Ao longo de mais de 40 anos de trabalho, a companhia produziu inúmeros espetáculos, se tornou
referência na cena teatral brasileira contemporânea e continua oferecendo ao público novos espetáculos.
Rodrigo de Freitas Costa
ARTICULAÇÕES ENTRE TEATRO, EDUCAÇÃO E ENSINO POR MEIO DA EXPERIÊNCIA
CÊNICA DO GRUPO GALPÃO (BELO HORIZONTE-BRASIL)
43
Entre as inúmeras análises acadêmicas sobre o tema, as discussões sobre Educação Histórica
ganharam espaço no Brasil por meio dos debates que envolvem os meandros da História, como
área de conhecimento, a Filosofia da História e a Educação. São muitos os trabalhos que
refletem sobre o ensino de história por meio de noções e proposições advindas especialmente
de Jörn Rüsen (2007). Porém, aqui nos voltaremos para o debate sobre Educação Histórica por
meio do trabalho desenvolvido por Peter Lee, professor de Educação Histórica no Instituto de
Educação da University of London e responsável pela divulgação da ideia de literacia histórica.
No texto Em direção a um conceito de literacia histórica (2006), Lee retoma as reflexões de
Rüsen, especialmente o debate sobre “consciência histórica”, com destaque para as condições
do ensino de história na Grã-Bretanha e assinala:
‘Há mais na história do que somente acúmulo de informações sobre o
passado. O conhecimento escolar do passado e atividades estimulantes
em sala de aula são inúteis se estiverem voltadas somente à execução
de idéias de nível muito elementar, como que tipo de conhecimento é a
história, e estão simplesmente condenadas a falhar se não tomarem
como referência os pré-conceitos que os alunos trazem para suas aulas
de história. Aqui a pesquisa tem algo a dizer”.
Lee, 2006: 136.
Dizer que há mais na história do que o acúmulo de informações ocorridas no passado é algo
conhecido entre os historiadores de ofício e ao mundo acadêmico. Contudo, isso não é tão
simples quando pensamos o ensino de história e, principalmente, a maneira como as crianças e
jovens entendem o passado. No geral, para muitos alunos, a história é somente um acúmulo de
informações sobre o ocorrido. E a questão que nos cabe é: como superar essa formação no
ambiente escolar? Lee continua:
“Muitos estudantes, então, operam com um conjunto de ideias que
funcionam bem na vida cotidiana, mas que tornam a história
impossível. Porque um passado permanente, somente uma
consideração verdadeira pode ser feita. O passado consiste de eventos
testemunháveis, então as afirmações dos historiadores sobre “o que
aconteceu” são como depoimentos de testemunhos de segunda mão.
[...] que não estávamos para ver o passado, e somente o
conhecimento direto nos fornece conhecimento confiável, não temos
como realmente saber o que aconteceu”.
Lee, 2006: 139.
Pelas palavras do pesquisador, “a história é impossível” e como forma de superar a dificuldade
apresentada pelo conhecimento prévio dos alunos integrados ao ensino de história, ele propõe
a noção de literacia histórica. Que, entre outras coisas, advoga que é preciso compreender, no
ambiente de ensino, como as considerações históricas são produzidas e as diferentes formas que
Rodrigo de Freitas Costa
ARTICULAÇÕES ENTRE TEATRO, EDUCAÇÃO E ENSINO POR MEIO DA EXPERIÊNCIA
CÊNICA DO GRUPO GALPÃO (BELO HORIZONTE-BRASIL)
44
ela assume. Assim, Lee afirma que “o problema parece ser menos com nosso entendimento de
como construir o conhecimento profundo dos estudantes do que com a nossa habilidade de
fornecer a eles um grande quadro” (Lee, 2006: 140)
De fato, a “nossa habilidade” para fornecer aos alunos uma estrutura histórica utilizável”
(Lee, 2006:146) é um desafio para professores/pesquisadores e o autor aponta que um dos
caminhos possíveis é apresentar aos alunos que o ensinado pode ser revisitado, assimilando
novas histórias numa estrutura aberta encorajando os alunos a refletir e pensar sobre as
suposições que eles mesmos fazem. Um conceito de literacia histórica oferece uma agenda
de pesquisas que une o trabalho passado com novas indagações” (Lee, 2006: 148).
A grande questão é como promover essas “novas indagações”. Nesse caso, acreditamos que a
lida com linguagens artísticas no campo educacional pode auxiliar na produção de
questionamentos e possibilidades mais abrangentes aos alunos.
Para aprofundamento desse debate, lançaremos mão do trabalho ressignificação do texto
dramático Os Gigantes da Montanha, de Luigi Pirandello, pelo grupo Galpão de Belo
Horizonte, em 2013. Os motivos que nos levam a tratar da composição desse espetáculo no
contexto das articulações entre Educação, Linguagens Artísticas e Ensino de História podem
ser resumidos em três: a amplitude do trabalho do Galpão, como grupo teatral brasileiro
reconhecido nacional e internacionalmente e realizador de teatro de rua, portanto, em contato
com público mais amplo se comparado com os que geralmente frequentam as salas teatrais; a
força do texto teatral, uma fábula que trata do valor à arte, à sensibilidade e ao teatro frente à
racionalidade exacerbada do mundo contemporâneo e, por fim, o fato do espetáculo dirigido
por Gabriel Villela ter atingindo o público juvenil, o que redundou na publicação da História
em Quadrinhos do texto teatral, baseado no espetáculo do grupo mineiro. A convergência
desses pontos insere, no contexto de discussão de formação de professores de História, as
articulações entre Educação, Linguagens Artísticas, Teatro e História.
A proposta cênica de “Os gigantes da montanha”
Pirandello (1867-1936), reconhecido como um dos mais importantes dramaturgos modernos
italiano, foi homem das artes, produziu inúmeros textos dramáticos, atuou como diretor e
ensaísta, além de escritor literário. No geral, críticos e intérpretes de diferentes lugares e tempos
atribuíram à obra pirandelliana um caráter cerebral, hermético e até como “teatro de tese”. Em
que pese esses marcadores interpretativos, o seu teatro tem muito a nos revelar, especialmente
no que diz respeito à reflexão do teatro no próprio teatro e ao papel da arte, da criação e da
poesia no contexto do século XX. E foi partindo desse princípio que o Galpão encenou a última
peça de Pirandello, Os gigantes da montanha.
Escrito ao longo da década de 1930, o texto dramático denominado de “mito” pelo autor, ficou
inconcluso, tendo Pirandello narrado em seu leito de morte o final do enredo ao filho Stefano
Rodrigo de Freitas Costa
ARTICULAÇÕES ENTRE TEATRO, EDUCAÇÃO E ENSINO POR MEIO DA EXPERIÊNCIA
CÊNICA DO GRUPO GALPÃO (BELO HORIZONTE-BRASIL)
45
Pirandello. A ação da peça ocorre no momento em que uma companhia teatral chega às terras
do mago Cotrone. A Companhia da Condessa é composta por Ilse, seu marido Conde e seis
atores que, juntos, passam por problemas financeiros e não encontram lugares em que possam
realizar suas encenações. Ilse, amante do teatro e da encenação, procura sempre encenar A
fábula do filho trocado, texto dramático escrito pelo próprio Pirandello em 1932 e que servia
de estudos para a escrita de Os gigantes da montanha. No contexto da peça, aquela cena teria
sido oferecida à Ilse por um poeta que se matou por amor à condessa. Enfim, esse núcleo de
personagens forma uma trupe teatral que está se desfazendo, enquanto continua acreditando no
poder da representação teatral.
As terras do mago Cotrone ficam num vale, numa espécie de vila esquecida no tempo, e ali
vivem os scalognati, personagens que não são humanos, mas possuem uma espécie de
refinamento por sua crença nas artes. Aquele é o espaço dos sonhos, da criação artística e
Cotrone, alter-ego de Pirandello, conduz os personagens em meio a luzes e sons que habitam a
vila esquecida no tempo.
O outro grupo de personagens são os gigantes que vivem na montanha. Eles representam a força
da racionalidade, das grandes construções e do concreto, enfim são os representantes diretos da
modernidade e das formas racionais de sobrevivência.
Apesar dos três grupos bem definidos de personagens, a rubrica inicial enfatiza que o tempo e
o lugar onde ocorrem o enredo são indeterminados, entre a fábula e a realidade, já que o texto
é considerado pelo autor um “mito”. E é justamente essa relação entre o mundo fabular, dos
sonhos, da criação artística e sua relação com o real que interessa a Pirandello, ao Galpão e a
nós no contexto de discussão sobre a potencialidade das artes, especialmente do teatro para o
processo educacional.
A chegada da companhia à vila de Cotrone ocupa grande parte do enredo e o contato entre os
moradores do lugar com os atores geram inúmeras discussões. Por mais que Ilse seja atriz,
acredite no potencial das artes e no poder da poesia, ela e seu grupo não compreendem a
existência daquele mundo lúdico. Ilse continua obcecada em apresentar seu teatro aos humanos,
ao passo que Cotrone demonstra que entre os humanos não há espaço para a poesia. Já os atores
da companhia pouco a pouco, com medo e dificuldade, começam a entender que estão imersos
em um outro mundo, composto prioritariamente por sonhos. Enquanto isso, Cotrone, utilizando
a magia da arte, tenta convencer Ilse a ficar ali, na vila, o espaço onde ela poderia representar
com tranquilidade A fábula do filho trocado. Inúmeras ações ocorrem, todas elas envolvendo o
contato entre o mundo dos sonhos e a realidade que a companhia teatral enfrentava.
A divisão dos seres que habitam o mundo, de acordo com Cotrone, é explicada pela existência
dos humanos, com seus “limitados cinco sentidos” (Pirandello, 2013:100), e dos espíritos. É a
esses que recai a explicação do personagem, que não deixa de ser a preocupação do dramaturgo.
Os sentidos que os humanos dão ao mundo são restritos, por sua vez, a arte, representada em
cena pelo teatro, é maior que os sentidos humanos, permite a complementaridade da vida e
compõe o real com outras cores marcadas pelos sonhos. Desse ponto de vista, os personagens
são mais consistentes que os humanos.
Rodrigo de Freitas Costa
ARTICULAÇÕES ENTRE TEATRO, EDUCAÇÃO E ENSINO POR MEIO DA EXPERIÊNCIA
CÊNICA DO GRUPO GALPÃO (BELO HORIZONTE-BRASIL)
46
Ao tratar de Cotrone, Sábato Magaldi aponta que “[...] se o espírito das personagens
representadas se incorpora aos fantoches, eles se movem e falam. Libertos das mutações dos
atores, os fantoches podem encenar o espírito das personagens e transmiti-lo sem falhas. Por
isso, estão um pouco acima dos atores”. (Magaldi, 2009: 33). É daí que surge a incompreensão
de Ilse e seus atores na vila. Para eles, é o ator que vida ao personagem, por isso a insistência
de Cotrone ao dizer que o “verdadeiro milagre” não está na representação, mas na magia do
poeta. É esse mundo de magia que importa a Pirandello, é nele que reside a essência da arte.
Apesar da longa explicação sobre os espíritos, ela é confusa para Ilse que, por sua vez, insiste
em perambular em busca de público para a sua fábula. A vila parece um mundo de loucos e um
universo sem sentidos. Diante disso, o mago sugere que a trupe encene a fábula aos gigantes da
montanha que, no dia seguinte, estarão em uma festa de casamento.
Os gigantes são os homens da cnica, da racionalidade, ligada aos grandes empreendimentos
do mundo contemporâneo: estradas, fábricas, represas, etc. Enfim, são os representantes do
mundo dos negócios, das ações, do dinheiro e da utilidade prática e da vida, muito diferentes
dos fantasmas que habitam a vila. Se os scalognati vivem de fantasias, vão além dos cinco
sentidos humanos e produzem cores, sons e quimeras, os gigantes são o oposto. Vivem da
materialidade, gostam de ser adulados, têm orgulho do dinheiro e acreditam que o valor de uma
obra se pelo que ela custa. Em meio a esses dois grupos, estão os atores da companhia da
condessa que acreditam que a representação teatral é capaz de tocar os homens, os gigantes da
montanha.
Ao final, os gigantes aceitam assistir à encenação de Ilse, se aborrecem facilmente, desejam
que ela cante e dance, mas ela insiste em declamar A fábula do filho trocado. Irritada com o
posicionamento do público, a atriz chama os espectadores de brutos que, nervosos, dilaceram o
corpo de Ilse. Dois atores da companhia tentam socorre-la e tambémo destroçados. Ao final,
o Conde chora e Cotrone compreende que o acontecido não tem culpados.
“Os pobres servos fanáticos pela vida [...] dilaceraram inocentemente,
como se fossem fantoches rebeldes, os servos fanáticos pela Arte, que
não sabem falar aos homens porque se excluíram da vida, mas não o
bastante para se contentar apenas com seus próprios sonhos; e que,
além disso, pretendem impor, aos que têm outras coisas a fazer, que
acreditem nesses sonhos”.
Pirandello, 2013:117-118.
Importa perceber que a intenção do dramaturgo é apontar a responsabilidade do destroçamento
de Ilse na relação entre os “fanáticos pela vida” e os “fanáticos pela arte”. Não
comunicabilidade entre esses dois grupos, cada um fala para si, o que significa que a arte, como
sonho, criação e força, expressa pela vila de Cotrone, não encontra lugar no mundo moderno.
Sob a direção de Gabriel Villela ocorreu a montagem de Os gigantes da montanha ao longo de
2013. A composição cênica utiliza muitas cores, informações cênicas, máscaras e luzes
Rodrigo de Freitas Costa
ARTICULAÇÕES ENTRE TEATRO, EDUCAÇÃO E ENSINO POR MEIO DA EXPERIÊNCIA
CÊNICA DO GRUPO GALPÃO (BELO HORIZONTE-BRASIL)
47
superpostas em uma plataforma que, ao centro, possuía um espaço rebaixado marcado por uma
cortina colorida que formava pequeno palco, onde muitas ações da peça ocorriam. Além disso,
destacam-se outros elementos cênicos como sombrinhas brancas e coloridas, bonecos de
madeira, bancos e mesas que são empurrados pelos próprios atores conforme as ações do
enredo. Os personagens da Companhia da Condessa Ilse (Inês Peixoto) vestem roupas coloridas
de tonalidade escura, os scalognati vestem roupas brancas e esvoaçantes que lembram
fantasmas e Cotrone (Eduardo Moreira) se assemelha a um mago de filmes infanto-juvenis e
porta um cajado com uma caveira, cuja mandíbula é articulada pelo ator. Em cena estão doze
atores, sendo dois convidados e os outros integrantes do grupo. A maquiagem cobre todos os
rostos, com base branca e detalhes que lembram os clows.
Foto de divulgação do espetáculo disponível em:
www.grupogalpão.com.br
No Diário de Montagem do espetáculo, escrito por Eduardo Moreira (2014), a complexidade
do texto dramático de Pirandello e as soluções cênicas voltadas para o teatro de rua são
realçadas no relato das ações da direção. O delírio que propositalmente Pirandello promove no
texto precisa estar em cena e isso ocorre por meio do trabalho de encenação dos atores, pelo
jogo de luzes e som sobrepostos ao tablado que serve de palco. A magia, para além do próprio
texto teatral, é construída pelo contato com a plateia, ou melhor, por meio do fenômeno teatral.
As diversas camadas interpretativas são levadas ao público e, como o processo de recepção é
dinâmico e plural, os sentidos só podem ser dados por aqueles que assistem. Porém é evidente
que a cena do Galpão se apresenta como um contraponto ao mundo da racionalidade. Ou seja,
a proposta intelectual de Luigi Pirandello se materializa cenicamente por meio das condições e
Rodrigo de Freitas Costa
ARTICULAÇÕES ENTRE TEATRO, EDUCAÇÃO E ENSINO POR MEIO DA EXPERIÊNCIA
CÊNICA DO GRUPO GALPÃO (BELO HORIZONTE-BRASIL)
48
das escolhas estéticas do Galpão. A encenação é uma ressignificação, releitura e atribuição de
novos sentidos ao texto teatral e é nesse espaço que a autoria do espetáculo se constrói.
Pirandello é o autor da fábula, mas a cena é de autoria de Gabriel Villela e do Grupo Galpão. O
fenômeno teatral se realiza e com ele a possibilidade de repensar os desmantelamentos do
mundo moderno que tanto preocupavam o dramaturgo. No contexto das discussões sobre
Linguagens Artísticas e Educação esse tipo de ação nos interessa para pensar as potencialidades
da arte no processo de aprendizagem.
A arte, como dimensão da produção humana, precisa ser compreendida por meio das
potencialidades de interpretação que gera. Assim, ela é uma forma de ação e de prospecção que
pode acender no espectador/receptor/público outras vivências, possibilidades e ações. A
problemática realçada por Pirandello em Os Gigantes da montanha é da ordem da fruição, da
poesia ou do sonho. Constatando o pragmatismo do mundo moderno, o dramaturgo espera
indicar ao público a existência e importância do mundo da poesia. De acordo com Eduardo
Moreira: “Gabriel defende que o mito só pode ser compreendido a partir de uma história que
é transmitida, como os contos que são relatados para as crianças” (MOREIRA, 2014: 55).
É importante perceber que a proposição do diretor tem como base a ideia de “contos relatados
para as crianças” e em termos de recepção do espetáculo foi fundamental. O que pode ser
observado no material produzido pelo grupo, em especial a criação de uma HQ da peça
2
.
O fato de existir essa publicação demonstra que certamente o caráter popular dado à encenação
voltada para o público de rua atingiu o esperado, colocando no centro do debate o cleo da
peça: a importância dos sonhos, das cores e das pulsões em meio ao pragmatismo e à
racionalidade. Parece que o Galpão materializou na linguagem cênica o que o diretor tratava
como importante, os contos narrados para crianças. A linguagem do mito, da fábula e dos
sonhos parece ser apenas elementos da linguagem infantil. E o que nos interessa, neste
momento, é buscar compreender os motivos para isso e também como esse tipo de ação impacta
na formação das pessoas.
A linguagem artística e suas possibilidades no campo educacional
Se a encenação procura relacionar-se de forma direta com o narrar ou o contar a uma criança
ações de um tempo mitológico e se tomamos a cena do Galpão como inspiração para discussões
sobre as possíveis relações entre Artes e produção de conhecimentos escolar, algumas questões
surgem: O teatro, no caso o do Galpão, não poderia ser uma fonte para os próprios historiadores
e professores pensarem que o conteúdo daquilo que ensinam precisa estar articulado a outras
dimensões do sujeito, como a vivência das crianças e jovens? Em que medida, ou teor, a
racionalidade histórica, científica, precisa ser avaliada no contexto educacional e do Ensino de
2
A partir da montagem, os quadrinhos foram idealizados e roteirizados por Inês Peixoto e ilustrados por Carlos
Avelino e Bruno Costa e publicado em 2019 pela Nemo, editora de HQs e graphic novels do Grupo Autêntica. Os
sonhos de Pirandello e as cores do Galpão se materializam em texto e visam atingir um público maior.
Rodrigo de Freitas Costa
ARTICULAÇÕES ENTRE TEATRO, EDUCAÇÃO E ENSINO POR MEIO DA EXPERIÊNCIA
CÊNICA DO GRUPO GALPÃO (BELO HORIZONTE-BRASIL)
49
História? O mundo moderno nos ensinou a ser práticos, racionais e até “um pouco duros de
cabeça”, como os gigantes. E é claro que a constituição da nossa disciplina História também
foi afetada por isso. Munidos com a certeza da ciência, lançamos mãos de métodos de trabalho
e produzimos conhecimento histórico. Acreditando na eficácia da ciência, partimos para o
ensino de nossa disciplina e muitas vezes erramos e nos frustramos. Qual o papel das artes no
processo de trabalho docente? Como as linguagens artísticas podem auxiliar no processo
educacional que, em certa medida, somos gigantes da montanha e relegamos às linguagens
artísticas apenas o espaço da fruição.
Pirandello foi, entre muitos, um dos que se colocou a pensar sobre o papel da arte frente ao
esfacelamento do mundo moderno. A partir de outras questões, com outra linguagem, mas
também sob o impacto dos efeitos da modernidade, Walter Benjamin, autor caro aos estudos
culturais, também trata dos atos de narrar, brincar, jogar e educar, e no contexto de nossa
discussão ele é importante não por isso, mas principalmente por ser uma fonte inspiradora
para refletir sobre o papel da arte no processo educacional.
São conhecidos os textos benjaminianos sobre a perda da narrativa e da experiência no mundo
moderno. Sendo essa uma preocupação do autor, ele buscou dimensionar de forma filosófica e
histórica o sentido de constituição do sujeito burguês, o que passa obviamente pela noção de
infância e as ações que dela decorrem, em especial o ato de brincar. O livro Reflexões sobre a
criança, o brinquedo e a educação (2009), que traz artigos, resenhas e análises escritos entre
1913 e 1932, é uma das obras benjaminianas onde os pesquisadores podem acessar as críticas
do autor à constituição da modernidade sobre o universo infantil.
Recorreremos aqui ao texto “História cultural do brinquedo” (1928), por julgar que ele traz
considerações importantes ao debate que se estabelece neste artigo inclusive para pensar
historicamente os artefatos relacionados à brincadeira. A percepção benjaminiana é a de que à
medida que o mundo se moderniza, ocorre uma separação entre o mundo das crianças e dos
pais, o que promove consequências sobre a formação, inclusive, dos adultos: “[...] ao imaginar
para as crianças bonecas de bétula ou de palha, um berço de vidro ou navios de estanho, os
adultos estão na verdade interpretando ao seu modo a sensibilidade infantil” (BENJAMIN,
2009: 92).
É perceptível a noção de Benjamin que as crianças possuem suas próprias ferramentas para
compreender o mundo e com o advento da modernidade houve uma separação do “mundo da
criança” do “mundo do adulto”, porém essa divisão legou a ideia de que o brincar, o jogar e o
ensinar deveriam ser realizados a partir das perspectivas dos adultos. Somos nós, dentro de uma
lógica de produção capitalista, que construímos os brinquedos e oferecemos às crianças, a
consequência direta disso é a forma como entendemos o ato de brincar. Não estaria ele sendo
cada vez mais mecanizado, padronizado, portanto, modernizado no sentido de construir nas
ações das crianças um sujeito social único, pobre de experiência?
É claro que essa discussão não se limita ao brinquedo e ao ator de brincar, mas envolve também,
em Benjamin, o contato da criança com a literatura, ou melhor, com o mundo ficcional. No
Rodrigo de Freitas Costa
ARTICULAÇÕES ENTRE TEATRO, EDUCAÇÃO E ENSINO POR MEIO DA EXPERIÊNCIA
CÊNICA DO GRUPO GALPÃO (BELO HORIZONTE-BRASIL)
50
texto “Livros infantis, velhos e esquecidos” (1924), o filósofo trata diretamente da literatura
infantil em seu país.
“O livro infantil alemão [...] nasceu com o Iluminismo. Com sua forma
de educação, os filantropos colocavam à prova o imenso programa de
formação humanista. Se o homem era piedoso, bondoso e sociável por
natureza, então deveria ser possível fazer da criança, ser natural por
excelência, o homem mais piedoso, mais bondoso e mais sociável”
Benjamin, 2009: 54-55.
O autor nos mostra como os adultos, em especial os pedagogos pós Iluminismo, foram criando,
a partir do entendimento moderno do mundo, o espaço de formação para as crianças. Assim foi
se perdendo as dimensões múltiplas do próprio olhar infantil sobre o mundo.
“É que as crianças são especialmente inclinadas a buscarem todo local
de trabalho onde a atuação sobre as coisas se processo de maneira
visível. Sentem-se irresistivelmente atraídas pelos detritos que se
originam da construção, do trabalho no jardim ou na marcenaria, da
atividade do alfaiate ou onde quer que seja. Nesses produtos residuais
elas conhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para
elas, e somente para elas. Neles, estão menos empenhadas em
reproduzir as obras dos adultos do que em estabelecer uma relação
nova e incoerente entre esses restos e materiais residuais. Com isso as
crianças formam o seu próprio mundo de coisas, um pequeno mundo
inserido no grande. Um tal produto de resíduos é o conto maravilhoso,
talvez o mais poderoso que se encontra na história espiritual da
humanidade: resíduos do processo de constituição e decadência da
saga”.
Benjamin, 2009: 57-58.
A elaboração de que a interpretação infantil do mundo passa pelos materiais residuais da
modernidade pode nos oferecer diversos debates sobre os atos de brincar, ensinar ou elaborar
materiais voltados para o processo educacional formal. Ao mesmo tempo, toda essa discussão
que trata do universo infantil não diz respeito apenas às crianças, mas também à maneira como
os adultos se portam no mundo do pragmatismo. Na peça de Pirandello, os gigantes da
montanha são os adultos que não conseguem se ater aos materiais residuais realçados por
Benjamin. O dramaturgo, pela linguagem teatral, não estava diretamente interessado no
universo infantil, mas sim no modo como os homens do pragmatismo são incapazes de olhar
para a arte e também para o fato de muitos artistas não saberem se comunicar com esse público.
o Grupo Galpão, preocupado com a linguagem popular, com o público das ruas e com a
fluidez da cena, realça na montagem de Os gigantes da montanha as características dos sonhos
e das quimeras, para tanto, o diretor Gabriel Villela volta-se ao universo infantil e ressalta que
o espetáculo só pode ser bem compreendido pelo público se ele for construído como os contos
Rodrigo de Freitas Costa
ARTICULAÇÕES ENTRE TEATRO, EDUCAÇÃO E ENSINO POR MEIO DA EXPERIÊNCIA
CÊNICA DO GRUPO GALPÃO (BELO HORIZONTE-BRASIL)
51
narrados às crianças. Villela e o Galpão compreendem que a problemática de Pirandello é sobre
a modernidade e para comunicar isso ao público colocam em contato o “mundo dos adultos”
(Gigantes) e o “mundo das crianças” (scalognati) nos fazendo lembrar dos ecos de Walter
Benjamin que fez de sua vida uma forma de reflexão sobre as relações entre arte e sociedade.
Por fim, cabe pensar esse debate no contexto do processo educacional e suas possíveis relações
com as artes e, para isso, recorremos às considerações do filósofo italiano Giorgio Agamben,
conhecido pela interpretação contemporânea da obra de Walter Benjamin.
Publicada no Brasil pela primeira vez em 2005, a obra Infância e História: destruição da
experiência e origem da história vem sendo lida e discutida por pesquisadores da filosofia da
educação que tem nos ajudado a refletir sobre os meandros que envolvem a atualidade dos
impactos da “pobreza de experiência”, realçada por Benjamin no início do século passado,
sobre o processo educacional.
Agamben volta-se para a infância reconhecendo-a “como o tempo-espaço da experiência ainda
não expressa em linguagem articulada, mas que necessita da linguagem para que, em silêncio,
se pense no que se passa ou, poeticamente, se exprima entre os saberes e prática escolares”
(Pagni; Valerio, 2020: 68).
Ao modo benjaminiano, a infância é vista como um espaço de experiência único, que possui
suas especificidades e que precisa ser compreendida a partir dessas especificidades. O que pode
nos ajudar a flexionar discursos educacionais comuns, muitos calcados na experiência
empobrecida da modernidade.
“A constituição dos saberes e das práticas escolares, desde a
modernidade, se apoiou nessa restrição da experiência ao empírico,
desenvolvida pelas ciências modernas, assim como se legitimou em
discurso de verdade que se fundamenta na figura do sujeito, no
pensamento supostamente identificante e na racionalidade
instrumental, convertendo a práxis educativa em uma tecnologia,
dentre as tantas existentes, no presente. Por conseguinte, restrita a
mera aplicação dos saberes à prática educacional, na atualidade, essa
arte-técnica parece deixar de se relacionar com a existência humana e
com a formação do homem para se constituir em uma operação de
ajustamento de meios a fins dados, desenvolvida pelo educador,
objetivando oferecer aos seus destinatários habilidades e competências
que os conforme ao existente. Em tal instrumentalismo da razão, sequer
a prática do pensar que incide sobre os modos de existência do
educador e a sua subjetividade são considerados necessário. Ao serem
minimizados nessa atividade e nos saberes e práticas com os quais esse
sujeito opera, são incorporados como uma espécie de mecanismo que,
mesmo para o educador, parece destituído de sentido. Por sua vez, os
destinatários dessa atividade também parecem ser privados dessa
prática do pensar e das interpelações sobre os sentidos de sua
Rodrigo de Freitas Costa
ARTICULAÇÕES ENTRE TEATRO, EDUCAÇÃO E ENSINO POR MEIO DA EXPERIÊNCIA
CÊNICA DO GRUPO GALPÃO (BELO HORIZONTE-BRASIL)
52
existência que, no limite, somente são exercitados no tempo e no espaço
fora do domínio institucional da escola: ao menos quando também
não estão subordinados a outros mecanismos sociais que ampliam ao
extremo essa interdição do pensar e do problematizar a existência”.
Pagni; Valerio, 2020: 69.
Nesse contexto, naturalizamos e singularizamos a prática educacional, deixando de fora
diversos elementos da vida cotidiana. Ao mesmo tempo, conhecemos referenciais
bibliográficos que sempre realçam a importância de valorizar, no ambiente escolar, a realidade
do educando. Porém, precisamos pensar qual o sentido desse ato.
Recuperemos duas passagens de Agamben para finalizar a discussão e permitir que a reflexão
ocorra:
“A ideia de uma infância como uma “substância psíquica” pré
subjetiva revela-se então um mito, como aquela de um sujeito pré-
linguístico, e infância e linguagem parecem assim remeter uma à outra
em um círculo no qual a infância é a origem da linguagem e a
linguagem a origem da infância. Mas talvez seja justamente neste
círculo que devemos procurar o lugar da experiência enquanto
infância do homem. Pois a experiência, a infância que aqui está em
questão, não pode ser simplesmente algo que precede
cronologicamente a linguagem e que, a uma certa altura, cessa de
existir para versar-se na palavra, não é um paraíso que, em
determinado momento, abandonamos para sempre a fim de falar, mas
coexiste originalmente com a linguagem, constitui-se aliás ela mesma
na expropriação que a linguagem dela efetua, produzindo a cada vez o
homem como sujeito”.
Agamben, 2005: 59.
Se a infância é compreendida como um espaço de experiência, onde as pessoas articulam suas
ações antes da linguagem, a compreensão da noção de História sofre consequências e,
novamente, nos faz lembrar as reflexões de Walter Benjamin:
“Por isso a história não pode ser o progresso contínuo da humanidade
falante ao longo do tempo linear, mas é, na sua essência, intervalo,
descontinuidade, epoché. Aquilo que tem na infância a sua pátria
originária, rumo à infância e através da infância, deve manter-se em
viagem”.
Agamben, 2005: 65.
Rodrigo de Freitas Costa
ARTICULAÇÕES ENTRE TEATRO, EDUCAÇÃO E ENSINO POR MEIO DA EXPERIÊNCIA
CÊNICA DO GRUPO GALPÃO (BELO HORIZONTE-BRASIL)
53
Sob esse aspecto, a História, inclusive a ensinada nas escolas, aquela que diz respeito ao
processo educacional formal, precisa ser vista a partir de uma dimensão mais ampla e que leve
em conta as descontinuidades. No campo da pesquisa acadêmica em História sabemos o quanto
o descontínuo é rico e cheio de possibilidades de experiências e é isso que precisa e pode ser
visto no ensino de nossa disciplina. Tratar da realidade dos alunos, como preconizam os teóricos
da Educação Histórica, pode ser aprofundado pela leitura cultural do social. O pensamento de
Benjamin, importante filósofo da cultura, é uma inspiração. Não por acaso muitos de seus
intérpretes, entre eles Agamben, voltaram-se para a relação entre História e Infância. De nossa
parte, como historiadores da cultura, faz bem olharmos para nossos documentos de análise e
perceber neles não apenas um objeto que metodologicamente poderia ser utilizado em sala de
aula, mas também uma forma de encontrar no fazer artístico a inspiração para uma prática
docente rica em experiência.
Luigi Pirandello e a cena do Grupo Galpão, tendo por objetivo alcançar o público brasileiro,
nos oferece estímulo como docentes e pesquisadores, não apenas como um conteúdo que
“preenche” a vida das crianças, mas especialmente como forma de pensar o lugar do adulto
como intérprete da História.
Referências
Agamben, G. (2005). Infância e História: destruição da experiência e origem da história.
Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG.
Benjamin, W. (2009). Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo: Editora
34.
Lee, P. (2006). Em direção a um conceito de literacia histórica. Educar, Curitiba, Especial, p.
131-150.
Magaldi, S. (2009). Princípios estéticos desentranhados das peças de Pirandello sobre teatro.
In: Guinsburg, J. Pirandello do teatro no teatro. São Paulo: Perspectiva, p. 15-34.
Moreira, E. (2014). Diário de montagem do espetáculo Os gigantes da montanha. Belo
Horizonte: Edições CPMT.
Pagni, P. ; Valerio, R. (2020). Experiência, infância, linguagem e acontecimento: a biopolítica
de Giorgio Agamben e a Educação. Saeculum: Revista de História, v. 25, n. 43. João Pessoa,
64-75, jul./dez. 2020.
Rodrigo de Freitas Costa
ARTICULAÇÕES ENTRE TEATRO, EDUCAÇÃO E ENSINO POR MEIO DA EXPERIÊNCIA
CÊNICA DO GRUPO GALPÃO (BELO HORIZONTE-BRASIL)
54
Pirandello, L. (2013). Os gigantes da montanha. Tradução e prefácio Beti Rabetti. 2. ed. Rio
de Janeiro: 7 Letras.
Rüsen, J. (2007). História Viva. Teoria da História III: formas e funções do conhecimento
histórico. Tradução de Estevão de Rezende Martins, Brasília: Editora Universidade de Brasília.
Dr. Rodrigo de Freitas Costa
Professor Associado do Departamento de História da Universidade Federal do Triângulo
Mineiro (UFTM -Uberaba-MG) e Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Estágio pós-doutoramento junto ao
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Doutorado, mestrado e graduação em História pela Universidade Federal de Uberlândia.