Thiago Inácio da Silva
TEATRO RITUAL: SABERES ANCESTRAIS NA CONTEMPORANEIDADE
49
TEATRO RITUAL: SABERES ANCESTRAIS NA CONTEMPORANEIDADE
TEATRO RITUAL: CONOCIMIENTOS ANCESTRALES EN LA ÉPOCA
CONTEMPORÁNEA
RITUAL THEATER: ANCESTRAL KNOWLEDGE IN THE CONTEMPORARY ERA
Thiago Inácio da Silva
1
PPGARTES-UNESPAR
thiago.inacio1@gmail.com
Resumo
O teatro ritual, especificamente, tem uma longa história de uso de rituais de cura e
empoderamento na cultura afro-brasileira. Na era digital, a interseção entre arte, tecnologia e
inclusão tornou-se um campo fértil para explorar questões sociais e culturais. Este artigo se
concentra em examinar como o teatro ritual, teatro negro, os saberes de terreiro e seus aparatos
tecnológicos podem desempenhar um papel fundamental na redução das desigualdades
enfrentadas pela população negra.
Palavras-chave: arte, ancestralidade, teatro negro, tecnologia.
Resumen
El teatro ritual, en concreto, tiene una larga historia de utilización de rituales de curación y
empoderamiento en la cultura afrobrasileña. En la era digital, la intersección entre arte,
tecnología e inclusión se ha convertido en un campo fértil para explorar cuestiones sociales y
culturales. Este artículo se centra en examinar cómo el teatro ritual, el teatro negro, el saber
terreiro y su aparato tecnológico pueden desempeñar un papel fundamental en la reducción de
las desigualdades a las que se enfrenta la población negra.
Palabras clave: arte, ancestralidad, teatro negro, tecnología
Abstract
Ritual theater, specifically, has a long history of using healing and empowerment rituals within
1
Produtor cultural. Mestre pela UNESPAR (PPGARTES). Brasil.
Thiago Inácio da Silva
TEATRO RITUAL: SABERES ANCESTRAIS NA CONTEMPORANEIDADE
50
Afro-Brazilian culture. In the digital age, the intersection of art, technology, and inclusion has
become a fertile ground for exploring social and cultural issues. This article focuses on
examining how ritual theater, Black theater, Afro-Brazilian spiritual knowledge (saberes de
terreiro), and their technological tools can play a key role in reducing the inequalities faced by
the Black population.
Keywords: art, ancestry, Black theater, technology.
Thiago Inácio da Silva
TEATRO RITUAL: SABERES ANCESTRAIS NA CONTEMPORANEIDADE
51
Introdução
Este artigo procura refletir sobre a utilização de rituais pautados na ancestralidade dentro das
artes cênicas, em particular o teatro negro no contexto contemporâneo, com base em uma
reflexão que abrange as contribuições de Antonin Artaud, Christine Douxami, Jordana Dolores
Peixoto, José Jorge de Carvalho, Kabenguele Munanga, Mariza Peirano, Muniz Sodré, Paula
Montero, Renata de Lima Silva (Kabilaewatala), Vagner Gonçalves Dias e Zigmund Bauman.
Aqui, também apresentaremos reflexões a partir do processo de rituais instauradores utilizados
no processo de montagem do espetáculo “Macumba: Uma gira sobre poder”, da Companhia
Transitória de Curitiba e com encenação, direção e texto da artista convidada, a mestre e doutora
pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Onisajé
2
, (Fernanda Júlia Barbosa), do Núcleo de
Teatro de Alagoinhas (NATA).
Procuraremos refletir como a tradição e os saberes ancestrais do teatro ritual integrados às
práticas teatrais atuais, podem oferecer uma abordagem rica e significativa para a expressão
artística e a compreensão da condição humana.
“Para não esquecer o que fizeram conosco. Para deixar em brasa viva os motivos pelos
quais lutamos. Para nunca esquecer” Trecho do espetáculo “Macumba: Uma gira sobre
poder.”
Negro é sinônimo de quê?
O espetáculo “Macumba: Uma gira sobre poder”, com direção de Onisajé (Fernanda Júlia
Barbosa), encenadora do NATA Núcleo Afrobrasileiro de Teatro de Alagoinhas (1999 a
2019) e proposição do artista Thiago Inácio da Companhia Transitória de Curitiba, estreou em
Curitiba, em 2016, na Sociedade Operária Beneficente 13 de Maio, clube fundado por negros
libertos no final do século XIX e de grande contribuição ao movimento de identidade negra em
Curitiba, sendo o segundo clube mais antigo do país.
A peça configurou-se como uma ação afirmativa e buscou dar voz e visibilidade aos artistas
negros para que ocorresse uma constante troca e se fizesse visível esta capacidade
transformadora e de combate incansável contra o racismo e pelo reconhecimento dos valores
das culturas negras na sociedade brasileira contemporânea, demonstrando o empoderamento da
mulher e do homem negro como pontos positivos.
Fernanda Júlia foi mais que uma diretora artística e dramaturga neste processo foi uma
mentora, guru, uma divindade ancestral que soube costurar todos os desejos, anseios, medos e
inseguranças de um grupo com personalidades tão diferentes, com uma negritude que precisava
2
Mestrado em Artes cênicas pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia
- PPGAC - UFBA, com a dissertação ANCESTRALIDADE EM CENA: CANDOMBLÉ E TEATRO NA
FORMAÇÃO DE UMA ENCENADORA (2016). Doutorado pelo PPGAC-UFBA com a tese TEATRO PRETO
DE CANDOMBLÉ: UMA CONSTRUÇÃO ÉTICO-POÉTICA DE ENCENAÇÃO E ATUAÇÃO NEGRAS
(2021.
Thiago Inácio da Silva
TEATRO RITUAL: SABERES ANCESTRAIS NA CONTEMPORANEIDADE
52
ser externada artisticamente. Ainda em Alagoinhas (BA) e na tratativa do processo do trabalho,
Onisajé nos pediu para sabermos os Orixás que norteavam nossos Oris
3
para entender melhor
a dinâmica do elenco com o qual iria trabalhar.
Nosso primeiro encontro, marcado na Sociedade Operária 13 de maio, foi uma reunião com
toda a equipe de montagem. A diretora nos revelou que tinha vindo com uma ideia pré-
concebida do que iríamos trabalhar, mas ao consultar o jogo de búzios, Exu veio responder que
primeiro ela deveria ouvir o grupo, a partir desta reunião sua preconcepção foi descartada e
uma nova trajetória se iniciou naquele momento.
As primeiras diretrizes de Onisajé vieram antes mesmo dos trabalhos em sala de ensaio, pois a
partir da sua vivência, a partir do teatro ritual, com o seu grupo, nos indicou que o processo só
poderia começar depois de pedirmos licença as divindades norteadoras do espetáculo, aqui no
caso os Orixás. Foi desta forma que foram destinados 05 dias, em uma chácara na região
metropolitana de Curitiba, para vivenciar uma sequência de rituais cênicos pautados na força
dos 04 elementos da natureza e um último, individual, com a diretora, destinado ao encontro
com nossas próprias emoções.
A vivência dos rituais cênicos instauradores (fogo, terra, ar e água) foi nosso processo de
conexão entre o elenco, direção e músicos. Nas religiões de matriz africana tudo o que se faz
de oferenda, primeiro se faz a Exu, senhor dos caminhos e da comunicação. Nossos rituais
instauradores se iniciaram neste contexto. Tínhamos 03 roupas específicas para os rituais, uma
na cor vermelha, outra na cor preta e outro na cor branca que mais tarde seriam usados também
em todos os ensaios. O primeiro dos rituais foi o do fogo, em uma segunda-feira à noite,
destinado a Exu, neste primeiro encontro ritualizamos nosso campo energético, ativamos a
pulsão do chakra base, despertávamos em nós a alegria, sensualidade e provocação do Orixá
das encruzilhadas. O espaço também foi ritualizado e preparado minuciosamente para esta
recepção, velas espalhadas pelos quatro cantos, velas em uma bacia com água, atabaques em
formação frontal, meia luz, cânticos, tudo era feito para que uma espécie de transe pudesse
acontecer e a entrega do elenco pudesse ser a mais orgânica possível em contato com a sua
própria ancestralidade. Sob a condução de Onisajé buscamos mapear com nossas mãos a
energia desses corpos negros, a busca por um corpo vibrante, pulsante como um falo
(representação simbólica de Exu). A ideia era reverberar em nossos peitos uma bola de fogo
flamejante que irradiasse essa energia para todos os membros. O sangue que entumece e
enrijece o pênis, o sangue que descama do útero (gerador de vida) quando não fecundação
através da menstruação.
No segundo dia, uma guinada se deu ao adentramos ao ritual da terra. Uma terça-feira, no
mesmo horário do ritual do dia anterior, aqui estávamos trajando a roupa preta, o espaço estava
reconfigurado para esta energia de força telúrica destinada a Obaluaiê, Omolu e Oxóssi. Neste
dia a condução foi para densificarmos nossas energias, tudo era pesado, nossa caminhadas eram
pesadas, nos enraizávamos à medida que caminhávamos pelo espaço, éramos terra, saíamos
dela, renascíamos dela. Nos foram entregues argila para que nos misturássemos com ela, pouco
a pouco cada ator e cada atriz ia se despindo, se enlameando com o barro, começamos a
3
Divindade pessoal que representa a cabeça, a individualidade e a conexão com o sagrado.
Thiago Inácio da Silva
TEATRO RITUAL: SABERES ANCESTRAIS NA CONTEMPORANEIDADE
53
extrapolar o espaço, estávamos soltos pelo espaço, não se viam mais corpos nus, não se viam
corpos humanos, nos animalizamos soltos pela mata. Ficamos por um bom tempo sendo
jaguatiricas, cavalos, corujas, cobras. Nossos animais de poder nos preencheram e tomaram
conta. Nossas ancestralidades animalescas se fizeram presentes.
Após uma experiência tão intensa, o terceiro dia, quarta-feira, já com a roupa branca, destinada
a Oxalá, Oxalufã, Oxaguiã, Oxalá Funfun, nos colocou em contato com o vento, a energia
eólica, destinado a Iansã. Diferentemente dos dias anteriores, este ritual se deu logo pela manhã,
era começo de outono, fazia frio e ventava muito. Todo o elenco dispunha de lençóis brancos e
o ritual se deu ao ar livre. Diferente do ritual da terra, tudo era muito leve, fluíamos pelo espaço
em movimentos graciosos, mas precisos, transitávamos entre ser brisa e ventania.
Misturávamo-nos com os lençóis e imagens eram criadas a partir desta investigação pelo
espaço. Uma ritualística muito leve e de muita movimentação.
Chegamos à quinta-feira, era o quarto dia de ritual e muitas percepções tinham sido afloradas,
sensações despertas, reflexões sobre ancestralidade e negritude estavam muito latente em
nossos corpos e mentes. Neste dia fomos para a beira do lago, estava mais frio que o dia anterior,
apesar do sol, o branco ainda era a roupa do dia e o horário era o da manhã. Este ritual era
destinado às yabás (Orixás de polaridade feminal), Yemanjá, Nanã, Oxum e também a Iansã
presente apesar te ter sido trabalhada sua força no dia anterior. Talvez, pela sensibilidade que
vínhamos dos outros rituais, este dia foi o mais forte e impactante, ele inicia com atabaques,
como todos os outros que conduziram a sonoridade dos rituais, com a puxada de toque Ijexá,
mais lento, e fomos convidados a revisitar todas as mulheres mais importantes de nossas vidas
(mães, avós, tias, professoras, companheiras), todas as mulheres fortes que de algum modo nos
marcaram. O elenco foi tomado por uma forte emoção, a investigação em torno do lago se
tornou uma grande dança em contato com a água e com a lama e todo o feminino se fez presente
naquele momento.
Nossa última ritualização do início do processo, pois todo transcorrer dos ensaios e
apresentações sempre foram ritualizados, nos levou de volta a cidade. Era uma sexta-feira a
noite e cada ator e atriz teve seu momento individual e provocador com a direção. Aqui é
importante destacar que como cada artista teve sua própria ativação, cabe a mim falar apenas
da minha vivência. O meu momento se iniciou pela espera ao lado de fora da sala de ensaio,
mais uma vez a instauração pré-ritual trazia um frio na barriga muito grande. Minha ativação
se deu na percepção da minha sexualidade, do meu feminino e também de onde naquele
momento se encontrava o meu tesão. Eu estava em preparação para o sacerdócio de Umbanda
então minhas energias me levaram para uma entrega neste lugar. Muito forte, muito potente.
Ao final, um bate-papo com a diretora sobre todo processo dos rituais e sobre aquele último dia
que foi conduzido por música, dança, provocações sensuais e ancestralidade.
Algo que permeou todos os rituais foi a oralidade e o sentimento do novo e do desconhecido.
A ritualização da espera e do não saber o que iria acontecer e qual seria a condução, sem
anotações, sem roteiros prévios. Outro ponto muito forte e comum foi o momento da partilha
do alimento, comíamos com a mão todo final de ritual, comidas típicas de terreiro em um
momento de comunhão e muito axé e ancestralidade. Em um post do seu Instagram a atriz e
influencer Taís Araújo relaciona bem os aspectos tecnológicos que envolvem estes elementos
Thiago Inácio da Silva
TEATRO RITUAL: SABERES ANCESTRAIS NA CONTEMPORANEIDADE
54
rituais. Ela diz que: “A oralidade é uma tecnologia ancestral e que exercê-la propõe mais do
que simplesmente a fala e a técnica e escuta ativa, mas sim conexões.” Foram essas conexões
que proporcionaram utilizar destes aparatos tecnológicos rituais para uma investigação artística.
Onisajé soube ouvir o que o trabalho pedia no caso, o que Exu orientou , ao mesmo tempo
em que colocava em prática sua dissertação de mestrado, e a resposta estava no que o próprio
grupo gostaria de expressar. Ela teve a sensibilidade e compreendeu que essa obra de arte tinha
muito mais a dizer para a cidade do que imaginávamos. As discussões de processo sempre nos
levavam a entender que a dimensão deste trabalho e a responsabilidade eram muito maiores do
que concebíamos em um primeiro momento. Desde a primeira leitura de mesa do texto até a
ativação do movimento ancestral, objeto da sua pesquisa, o poeirão cênico tudo foi
minuciosamente discutido e pensado em um espetáculo que pudesse expressar as inquietações
artísticas e sociais sobre negritude.
Porém, nada disso seria possível sem a comunhão e a entrega das atrizes Flávia Imirene e
Tatiana Dias e dos atores Gide Ferreira e Thiago Inácio. Trouxemos para o processo questões
para além do artístico éramos artistas com nossas dores e cicatrizes expostas em sala de
ensaio, provocados pela direção, o que trouxe um texto que estava entalado em nossos âmagos.
Pois o racismo está presente em nossa sociedade, e como bem coloca o antropólogo Kabengele
Munanga, a questão da identidade do negro é um processo doloroso. Parece simples definir
quem é negro no Brasil. Mas, num país que desenvolveu o desejo de branqueamento, não é fácil
apresentar uma definição de quem é negro ou não. Há pessoas negras que introjetaram o ideal
de branqueamento e não se consideram como negras.” (MUNANGA, 2004: 56)
É mais do que a melanina em nossa pele ou o nosso cabelo, é o empoderamento de ambos. É
resistência. É um ato político. São todas as marcas ancestrais que habitam em nós. Em todos os
preconceitos sofridos.
“Os conceitos de negro e de branco têm um fundamento etno-semântico,
político e ideológico, mas não um conteúdo biológico. Politicamente, os que
atuam nos movimentos negros organizados qualificam como negra qualquer
pessoa que tenha essa aparência. É uma qualificação política que se
aproxima da definição norte-americana. Nos EUA não existe pardo, mulato
ou mestiço e qualquer descendente de negro pode simplesmente se apresentar
como negro. Portanto, por mais que tenha uma aparência de branco, a pessoa
pode se declarar como negro”.
MUNANGA, 2004: 52
Foi a partir deste espetáculo que resgatei a minha ancestralidade que permeia minha trajetória
como artista negro, pai de santo de Umbanda, mestre sala e toda a herança cultural que a mim
pertence e faz a história do nosso país.
Ewáemí!!! Sou belo, iluminado pelo Orixá que brilha como a coroa do Sol, sou belo! Sou
belo pois minhas mãos trazem as digitais que me individualizam e os poros que me
integram a uma história antiga, de mandingas, de sonhos e de ancestralidades.” (Trecho
do espetáculo “Macumba: Uma gira sobre poder”)
Thiago Inácio da Silva
TEATRO RITUAL: SABERES ANCESTRAIS NA CONTEMPORANEIDADE
55
Os saberes de terreiro e suas tecnologias
A cultura afro-brasileira é rica e diversificada, com uma história que remonta aos tempos da
escravidão no Brasil. Uma parte significativa dessa cultura é representada pelos terreiros, que
são espaços religiosos onde são praticadas as religiões de matriz africana. Esses terreiros
desempenham um papel importante na preservação das tradições e na construção da identidade
da nossa cultura. É importante também se debruçar sobre as tecnologias presentes nos terreiros,
iremos fazer isso a partir da ótica de Muniz Sodré e sua aplicação nesse contexto inicialmente
com a obra: “O Terreiro e a Cidade: a formação social negro brasileira”, (1988).
“O espaço do terreiro vai ser o lugar de reterritorialização de uma cultura
fragmentada, de uma cultura de exílio. É ali que o indivíduo vai reviver, vai
tentar refazer a sua família, e o seu clã, que tal como na África, são formados
independentemente de laços sanguíneos. No espaço do terreiro, o indivíduo
buscará o sentido de pertencimento a uma coletividade e ritualisticamente vai
reencontrar a sua nação. O terreiro vai induzir em seus filhos posturas,
comportamentos, assunções de outras coletividades. Várias criações como os
afoxés, congadas, maracatus, folias, grupos de samba podem ser
reconhecidas como desdobramento das matrizes simbólicas dos terreiros,
conforme atesta Muniz Sodré terreiro é um espaço de recriação familiar,
ancestral e cultural preto”.
SODRÉ, 1988: 50
em seu livro Reinventando a Cultura: a comunicação e seus produtos, (2001), o autor
argumenta que a tecnologia é um conjunto de práticas, saberes e objetos que permitem a
produção e a reprodução da cultura. Nesse sentido, as tecnologias não são apenas ferramentas,
mas também processos sociais e culturais. De acordo com Sodré, a tecnologia não se limita a
dispositivos eletrônicos ou inovações industriais.
Os terreiros afro-brasileiros são espaços onde as tecnologias culturais são centrais para a prática
religiosa e para a manutenção das tradições. Várias dimensões das tecnologias dos terreiros
podem ser identificadas. A música e a dança desempenham um papel fundamental nos terreiros,
sendo consideradas tecnologias culturais que conectam os praticantes com suas divindades. Os
tambores, por exemplo, são instrumentos essenciais nas cerimônias, permitindo a comunicação
com os orixás e o transe dos fiéis.
Avestimentaeosadereçosusadosnosterreirossãotecnologiassimbólicas que expressam a
identidade religiosa e étnica dos praticantes. Cada cor, cada peça de roupa tem um significado
específico e contribui para a construção da atmosfera ritualística. A transmissão oral de
conhecimento é uma tecnologia central nos terreiros. As histórias, Itans, Orikis e cânticos são
passados de geração em geração por meio da palavra falada e cantada, garantindo a
continuidade das tradições. As imagens e os artefatos presentes nos terreiros têm um significado
profundo. Estatuetas, pinturas e outros objetos ritualísticos representam os orixás e servem
como canais de comunicação com as divindades. A disposição terreiro é uma tecnologia que
influencia a dinâmica ritual. Os terreiros são projetados para criar uma atmosfera específica que
favorece a conexão com o divino, com áreas dedicadas a diferentes cerimônias e funções.
Thiago Inácio da Silva
TEATRO RITUAL: SABERES ANCESTRAIS NA CONTEMPORANEIDADE
56
Muniz Sodré nos oferece uma perspectiva muito rica ao considerar as tecnologias culturais
presentes nos terreiros afro-brasileiros. Ao reconhecer que a tecnologia vai além da inovação
tecnológica convencional, podemos apreciar o valor das práticas e saberes contidos nesses
espaços religiosos. As tecnologias dos terreiros são ferramentas essenciais para a preservação
das tradições, a construção da identidade afro-brasileira e a conexão espiritual dos praticantes
com suas divindades e ancestrais.
O autor nos convida a expandir nossa compreensão das tecnologias culturais e reconhecer a
importância dos terreiros como espaços onde essas tecnologias desempenham um papel crucial
na manutenção da cultura afro-brasileira.
Acompanhando os novos tempos sem perder a tradição
Zygmunt Bauman, em seu livro “Modernidade Líquida”, argumenta que vivemos em uma
época caracterizada pela fluidez e pela efemeridade das relações e das estruturas sociais. A
busca incessante por novidades e a constante mudança exigem a manutenção de tradições e
rituais. Bauman enfatiza a importância de encontrar formas de estabilidade e identidade em
meio à liquidez moderna. A modernidade líquida em que vivemos traz consigo uma misteriosa
fragilidade dos laços humanos um amor líquido. A segurança inspirada por essa condição
estimula desejos conflitantes de estreitar esses laços e ao mesmo tempo mantê-los frouxos”.
(BAUMAN,2001: 21)
É nesse contexto que o ritual do teatro pode desempenhar um papel crucial. Antonin Artaud,
por sua vez, concebeu o teatro como um espaço de catarse e transformação. Sua abordagem
teatral, conhecida como Teatro da Crueldade, buscava despertar emoções intensas no público,
fazendo com que ele confrontasse sua própria essência.
Digo que essa linguagem concreta, destinada aos sentidos e
independente da palavra, deve satisfazer antes de tudo aos sentidos,
que há uma poesia para os sentidos assim como há uma poesia para a
linguagem e que a linguagem física concreta à qual me refiro é
verdadeiramente teatral na medida em que os pensamentos que
expressa escapam à linguagem articulada.
ARTAUD,2006: 36
Artaud acreditava que o teatro ritual, com sua capacidade de tocar o âmago do ser humano,
poderia ser uma ferramenta poderosa para enfrentar a superficialidade e a alienação da
sociedade moderna. O ritual do teatro não deve ser visto como algo arcaico ou ultrapassado,
mas como uma resposta à busca por significado em um mundo cada vez mais fragmentado e
efêmero. Os rituais cênicos inspirados em ritualísticas oriundas de religiões de matriz africana
podem ser um campo de investigação de uma poética para além da racionalidade. “Através dos
meios seguros, a sensibilidade seja colocada em estado de percepção mais aprofundada e mais
apurada, é esse o objetivo da magia e dos ritos, dos quais o teatro é apenas um reflexo
(ARTAUD, 2006:117).
Não se trata de uma mera recriação do passado, mas sim de uma reinvenção que respeita
Thiago Inácio da Silva
TEATRO RITUAL: SABERES ANCESTRAIS NA CONTEMPORANEIDADE
57
a essência dos rituais, os torna acessíveis e significativos para as audiências de hoje. O teatro
ritual é uma ferramenta poderosa para enfrentar os desafios da contemporaneidade. Ao
incorporar as reflexões de Bauman sobre a fluidez da modernidade e as ideias de Artaud sobre
a crueldade teatral, podemos encontrar um caminho para manter viva a tradição e os saberes
ancestrais oferecendo um espaço onde a profundidade e as inovações podem florescer. O teatro
ritual não é uma relíquia do passado, mas uma fonte de inspiração e renovação para o futuro da
arte cênica e da nossa conexão com o sagrado e o humano.
O sagrado na arte e o profano da religião: possíveis reflexões
A confluência entre arte e religião tem sido um território útil para a expressão da espiritualidade
humana ao longo da história. No entanto, esta relação complexa levanta frequentemente
questões sobre como o sagrado é representado e vivenciado no contexto de rituais e
performances, especialmente quando se trata das religiões de matriz africana. Por isso tem se
explorado cada vez mais o tema do sagrado e do profano na cena ritual, com foco nas expressões
artísticas do teatro negro e questionado se a representação estética dessas religiões pode
profanar ou preservar a sacralidade.
No artigo Metamorfoses das Tradições Performáticas Afro-Brasileiras: De Patrimônio
Cultural a Indústria de Entretenimento”, (2004), de José Jorge de Carvalho, o entendimento
por sagrado e profano é abordado em diferentes cenários. O autor discute a relação entre o
sagrado e o profano no contexto das tradições performáticas afro-brasileiras, destacando a
importância desses conceitos na compreensão das práticas culturais.
Carvalho explora a noção de sagrado como aquilo que está relacionado a dimensões espirituais,
rituais e religiosas, muitas vezes associadas a práticas tradicionais e devoção. Por outro lado, o
profano é apresentado como aquilo que está fora do âmbito sagrado, relacionado a esferas
seculares, comerciais e de entretenimento. Além disso, o autor ressalta a importância de não
cair em uma visão purista das tradições culturais performáticas, reconhecendo a complexidade
das relações entre o sagrado e o profano no contexto contemporâneo. Essas reflexões oferecem
um entendimento mais preciso sobre as dinâmicas entre o sagrado e o profano nas tradições
performáticas afro-brasileiras, considerando as transformações e desafios enfrentados por essas
práticas culturais.
Por sua vez, a autora Paula Montero, em a “Teoria do simbólico de Durkheim e Lévi-Strauss”,
(2014), apresenta essa discussão através das ideias de Émile Durkheim no contexto da
antropologia francesa do século XX. Para Montero, o sociólogo francês, explora a dualidade
entre o sagrado e o profano de uma perspectiva mais teórica. Durkheim, ao adotar o totemismo
como uma forma fundamental de religião, destaca a universalidade da divisão entre sagrado e
profano e argumenta que as crenças religiosas estão mais relacionadas a representações do
mundo do que a deidades específicas. Ele, segundo a autora, enfatiza a importância das
representações coletivas na formação das categorias mentais e, por conseguinte, na
estruturação do conhecimento humano. Assim, a relação entre Carvalho e Durkheim reside na
discussão sobre a natureza do sagrado e do profano, sendo que o segundo aprofunda essa análise
ao incorporar sua perspectiva e suas contribuições para a compreensão das formas elementares
Thiago Inácio da Silva
TEATRO RITUAL: SABERES ANCESTRAIS NA CONTEMPORANEIDADE
58
da vida religiosa.
A cena ritual, seja no teatro ou na performance, é um espaço onde as fronteiras entre o sagrado
e o profano podem se tornar tênues. Ela oferece um terreno fértil para a exploração de
experiências religiosas e culturais, permitindo que o público entre em contato direto com
elementos rituais. As religiões de matriz africana, como o Candomblé e a Umbanda, têm suas
raízes em tradições ancestrais que valorizam a conexão com esses espíritos, a natureza e a
comunidade.
Em Rituais ontem e hoje”, (2003), Mariza Peirano elabora o conceito de ritual como um
sistema culturalmente construído composto por práticas e ações. Inspirada na perspectiva
performativa do ritual desenvolvida por Tambiah (1985), Peirano enfatiza a necessidade de
examinar a prática e a vivência dos adeptos. A definição de ritual proposta por Peirano
incorpora a noção de que o que é expresso verbalmente também se concretiza, ressaltando a
importância de encarar a etnografia como mais do que um simples relato de eventos
testemunhados ou o contexto da situação.
“O ritual é um sistema cultural de comunicação simbólica. Ele é constituído
de sequências ordenadas e padronizadas de palavras e atos, em geral
expressos por múltiplos meios. Estas sequências têm conteúdo e arranjo
caracterizados por graus variados de formalidade (convencionalidade),
estereotipia (rigidez), condensação (fusão) e redundância (repetição). A ação
ritual nos seus traços constitutivos pode ser vista como “performativa” em
três sentidos: 1) no sentido pelo qual dizer é também fazer alguma coisa como
um ato convencional [como quando se diz “sim” à pergunta do padre em um
casamento]; 2) no sentido pelo qual os participantes experimentam
intensamente uma performance que utiliza vários meios de comunicação [um
exemplo seria o nosso carnaval] e 3), finalmente, no sentido de valores sendo
inferidos e criados pelos atores durante a performance”
TAMBIAH apud Peirano, 2003: 9
Peirano investiga a tensão entre a universalidade e a particularidade, questionando a
generalização da experiência sagrada e os impactos da globalização no âmbito das religiões
afro-brasileiras. Essa perspectiva proporciona uma compreensão mais profunda do ritual e de
como ele se entrelaça com o cotidiano dos indivíduos, sublinhando a importância de examinar
a prática e a vivência dos fiéis em busca de novos referenciais para o estudo das religiões afro-
brasileiras.
Carvalho (2004) discute a complexa relação entre os saberes performáticos e o sagrado no
contexto das representações ou vivências de matriz africana. O autor aborda a questão da
profanação do sagrado ao discutir a transformação das práticas tradicionais em espetáculo,
especialmente quando essas práticas são apropriadas por agentes externos às comunidades
detentoras desses saberes. Ele destaca a importância de reconhecer a precedência autoral e a
alteridade da herança cultural afro-brasileira, enfatizando o compromisso com a defesa da sua
dignidade.
Além disso, o autor ressalta a necessidade de considerar a dimensão do inegociável no
Thiago Inácio da Silva
TEATRO RITUAL: SABERES ANCESTRAIS NA CONTEMPORANEIDADE
59
contexto das negociações entre as comunidades e os agentes da indústria cultural, especialmente
quando se trata de práticas ligadas à devoção ou presentificação do sagrado. Essas reflexões
indicam que os saberes performáticos podem profanar o sagrado quando são apropriados de
forma inadequada, desrespeitando a autenticidade e a sacralidade das tradições de matriz
africana. O autor enfatiza a importância de uma abordagem responsável e respeitosa em relação
a essas práticas culturais, reconhecendo sua importância e significado dentro de seus contextos
originais.
“O sagrado, como argumentei em outro texto, coloca os limites da
negociação, entre as comunidades e os agentes da indústria cultural, que visa
transformar uma arte ritual tradicional em espetáculo. Negociar faz
sentido (pois negociar é ceder limites a troco de dinheiro) quando invocamos
a dimensão do inegociável (daquele limite a partir do qual não se pode
mover). Caso contrário, não seria negociação, mas conquista, rendição,
capitulação, entrega completa, perda do divino”.
CARVALHO, 2004: 11.
Para evitar a profanação do sagrado, é essencial que artistas e praticantes religiosos se envolvam
em diálogo e colaboração. Isso pode permitir que uma representação seja mais autêntica e
respeitosa.
Arte como ritual e a sua experiência
A arte tem o poder de criar experiências emocionais e espiritualmente profundas. Quando usada
com sensibilidade, ela pode ser uma ferramenta poderosa para transmitir a profundidade e a
riqueza da cultura de religiosidade oriunda de África. É importante considerar que as mesmas
são diversas e multifacetadas. Não existe uma única representação autêntica, a diversidade de
práticas deve ser respeitada. A educação desempenha um papel fundamental na prevenção da
profanação do sagrado. Tanto os artistas quanto o público devem se esforçar para entender e
respeitar as tradições religiosas representadas na cena ritual.
A relação entre o sagrado e o profano na cena ritual não é tão simples. O teatro negro oferece
uma oportunidade de explorar essa relação ao promover o diálogo, a colaboração e o respeito,
assim podemos garantir que a representação estética dessas tradições preserve sua sacralidade
e contribua para uma compreensão mais profunda e enriquecedora das religiões de matriz
africana.
O conhecimento ancestral refere-se ao conhecimento e sabedoria transmitidos de geração em
geração através da tradição oral. Este conhecimento é frequentemente associado aos povos
tradicionais e é considerado um recurso valioso para a compreensão do mundo natural e da
relação entre os seres humanos e o meio ambiente. a sabedoria do terreiro refere-se aos
saberes e práticas das religiões afro-brasileiras. Essas religiões são baseadas na crença nos
espíritos ancestrais e no poder da natureza, assim como em outras culturas, por exemplo, as
Thiago Inácio da Silva
TEATRO RITUAL: SABERES ANCESTRAIS NA CONTEMPORANEIDADE
60
indígenas.
A transmissão de conhecimento através da tradição oral é um processo que envolve não apenas
a transferência de informações, mas também a preservação de valores e tradições culturais.
“Na ‘lógica’ das religiões afro-brasileiras, a palavra falada é considerada
uma importante força de axé (força vital) e veículo do poder sagrado. Falar
é um ato mágico que impregna por contaminação simbólica ao sujeito da fala
e seu ouvinte. Na transmissão do conhecimento litúrgico dizer quando e como
e para quem são instâncias determinadas pela hierarquia religiosa (...) Para
o pai de santo dar entrevistas ou falar ao antropólogo adquirem significados
que vão além da simples transmissão de conhecimentos ‘objetivos’,
significando, muitas vezes, uma inversão dos procedimentos religiosos.
Porque, nessas religiões, o processo de obtenção de conhecimento raramente
se faz através de uma dinâmica de perguntas e respostas. Perguntar é uma
quebra da regra do silêncio e do respeito, depois acredita-se que o
conhecimento deva ser transmitido de acordo com os méritos de cada um em
função do tempo de iniciação”.
SILVA, 2015, p. 44.
No caso do conhecimento ancestral e da sabedoria do terreiro, essa transmissão muitas vezes é
feita por meio de contação de histórias, canto, dança e ritual. Essas formas de expressão não
são apenas um meio de transmitir conhecimento, mas também uma forma de se conectar com
o mundo espiritual e homenagear os antepassados.
A questão de saber se essas formas de expressão são passíveis de escrita de roteiros ou
pertencem ao domínio da performance e do teatro é certamente as nuances que implicam o
conhecimento e definição conceitual de cada aspecto. Embora a transmissão de conhecimento
através da tradição oral possa certamente ser roteirizada, é importante notar que o ato de
escrever estas histórias e tradições pode mudar. O ato de representar as mesmas, por outro lado,
pode trazê-las à vida e permitir que sejam vivenciadas de forma mais visceral e emocional.
Um ritual chamado Teatro Negro
Em seu livro “Teatro Negro: a realidade de um sonho sem sono”, (2001),Christine Douxami
explora o papel do teatro na comunidade afro-brasileira e as formas como ele pode ser usado
para preservar e transmitir conhecimentos ancestrais. Ela argumenta que o teatro pode ser um
instrumento poderoso para a mudança social e que tem o potencial de conectar as pessoas com
a sua herança cultural de uma forma significativa. Ao utilizar o teatro para contar as histórias
dos seus antepassados e celebrar as suas tradições, essas comunidades podem criar um
sentimento de orgulho e pertencimento que pode ajudar a fortalecer a sua identidade cultural.
Explora de maneira ampla a problemática do teatro negro, contemplando diversos elementos
que podem influenciar as definições atribuídas a este conceito no país. Ela menciona que a
denominação de teatro negro pode estar relacionada à presença de atores negros, à participação
Thiago Inácio da Silva
TEATRO RITUAL: SABERES ANCESTRAIS NA CONTEMPORANEIDADE
61
de um diretor negro ou a uma produção negra. Além disso, destaca a importância do tema
tratado nas peças como uma possível definição do tema.
A autora faz uma análise crítica das diversas perspectivas e definições que têm como base o
entendimento do que constitui o teatro negro no contexto brasileiro. Ela resgata a existência de
numerosos grupos de teatro negro no Brasil, desde os anos 1940 até os dias atuais, por meio de
um trabalho etnográfico nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador. Revela as
diferentes experiências desse ato artístico-militante, destacando a importância do teatro
profissional na luta por igualdade racial e na expressão da cultura afro-brasileira. Além disso,
aborda a transformação do teatro negro no Brasil, desde a rejeição inicial da proposta de um
teatro negro por parte dos próprios negros militantes até a profissionalização e a presença
crescente de atores negros no palco, bem como a valorização de temáticas negras e tradições
populares.
Figura importante neste movimento é Abdias do Nascimento. Douxami aponta que sua atuação
foi fundamental na criação do Teatro Experimental do Negro (TEN) em 1944, que
desempenhou um papel crucial na promoção da presença de atores negros nos palcos brasileiros
e na valorização da cultura afro-brasileira. Além disso, a autora ressalta que os membros do
Teatro Experimental do Negro criaram e favoreceram o desenvolvimento de uma dramaturgia
negra, influenciando a existência de várias peças cuja criação foi motivada pela presença do
TEN. A atuação de Abdias do Nascimento e do TEN foi fundamental para a afirmação do teatro
negro no Brasil, proporcionando uma plataforma para a expressão da cultura afro-brasileira e a
luta contra a discriminação racial.
Mas ainda, de acordo com Douxami, a contribuição de Abdias do Nascimento e o TEN vai
além, a autora salienta que ambos promoveram eventos específicos, como concursos de beleza
da mulher negra e o incentivo à presença do negro nas artes em geral, questionando a alienação
estética da sociedade convencional. Eles também realizaram eventos estritamente políticos,
como convenções e congressos, demonstrando a interseção entre teatro e política na busca por
transformações sociais e na afirmação da identidade negra.
De acordo com as autoras Renata de Lima Silva (Kabilaewatala) e Jordana Dolores Peixoto em
"Negro Teatro, Negra Performance", (2022), “o Teatro Negro no Brasil tem se constituído e se
expressado de muitas maneiras, por meio de variadas vozes, corpos, formas, estéticas e
poéticas e elaborado distintos discursos políticos. A diversidade do Teatro Negro reflete a
riqueza e a complexidade das culturas africanas e afrodiaspóricas”. (PEIXOTO, J. D.,
& SILVA, R. DE L., 2022: 11)
Neste contexto, destaca-se a ideia da riqueza e diversidade presentes no Teatro Negro brasileiro,
que se manifesta através de uma variedade de elementos, como vozes, corpos, formas artísticas
e poéticas. Além disso, enfatiza-se a importância dessa expressão cultural na representação e
reflexão das culturas africanas e afrodiaspóricas, destacando sua complexidade e contribuição
política. Renata de Lima Silva também apresenta um histórico da experiência negra no teatro
brasileiro desde o período da invasão dos europeus e início do processo de colonização e
escravização das populações negras e indígenas. Além de descrever a trajetória da presença
negra na cena, a pesquisadora problematiza e analisa a qualidade dessa presença e os diversos
Thiago Inácio da Silva
TEATRO RITUAL: SABERES ANCESTRAIS NA CONTEMPORANEIDADE
62
contextos em que ela aconteceu.
Entre outras perspectivas as autoras apresentam contribuições de autores sobre as características
e o desenvolvimento histórico do Teatro Negro, como por exemplo, Leda Maria Martins, em
seu trabalho "A cena em sombras", onde destaca a importância de se conhecer e refletir sobre
a teatralidade de formas expressivas da cultura negra, como a capoeira, os congados e reinados,
entre tantas outras, que tais performances oferecem subsídios fundamentais para a leitura e
compreensão aprofundada do Teatro Negro.
Conclusão
Os cruzamentos de saberes e compreensões, no que diz respeito aos aspectos envolvidos neste
artigo, tais como o teatro ritual e os seus desdobramentos, assim como sua relação com a arte
ao longo do tempo, bem como os saberes de terreiro e seus aparatos tecnológicos, revelam-se
como um campo de estudo e prática profundamente enriquecedor e provocativo. Nesta breve
produção, exploramos como esses elementos se entrelaçam e oferecem perspectivas únicas para
abordar as complexas realidades enfrentadas por comunidades historicamente marginalizadas.
O teatro ritual muito tempo, desempenha um papel fundamental na preservação da cultura
afro-brasileira e na transmissão de saberes ancestrais. No entanto, a contemporaneidade trouxe
novas dimensões para essa forma de expressão artística. Através da digitalização de rituais e
performances, é possível alcançar um público mais amplo, compartilhar conhecimentos e
celebrar tradições de maneira global, abrindo portas para a inclusão e o reconhecimento das
contribuições culturais da população preta.
No entanto, também devemos estar cientes dos desafios que surgem com essa fusão de arte e
tecnologia. As desigualdades digitais persistem com muitas comunidades negras periféricas
enfrentando dificuldades no acesso à tecnologia e à conectividade.
Portanto, é essencial que os esforços sejam feitos para garantir que as inovações tecnológicas
não aprofundem as disparidades existentes, mas, ao contrário, as abordem de forma proativa.
Os saberes de terreiro são uma fonte rica de conhecimento e tradição, amplamente
marginalizados pela sociedade dominante. No entanto, à medida que as comunidades pretas
ganham visibilidade na era digital, esses saberes têm a oportunidade de brilhar e serem
valorizados como parte integrante da herança cultural brasileira. A preservação e transmissão
desses saberes podem ser facilitadas pela tecnologia, criando uma ponte entre gerações e
fortalecendo a identidade cultural.
O encontro entre os temas abordados é um território complexo e instigante. À medida que
exploramos essas conexões, é fundamental que sejamos sensíveis às questões de desigualdade,
e que trabalhemos ativamente para garantir o fortalecimento da herança cultural e celebrar as
contribuições das comunidades negras para a riqueza cultural do Brasil. Neste cenário
dinâmico, a arte e a tecnologia podem se unir para criar um futuro mais inclusivo e
diversificado, onde os saberes de terreiro e a cultura afro-brasileira possam florescer
plenamente na era digital.
Thiago Inácio da Silva
TEATRO RITUAL: SABERES ANCESTRAIS NA CONTEMPORANEIDADE
63
Bibliografia
Artaud, A. (2006). O teatro e seu duplo. Martins Fontes.
Bauman, Z. (2001). Modernidade líquida. Zahar.
Carvalho, J. J. (2004). Metamorfoses das tradições performáticas afro-brasileiras: De
patrimônio cultural a indústria do entretenimento. In Celebrações e saberes da cultura popular
(pp. 6583). Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular/IPHAN. (Série Encontros e
Estudos)
Douxami, C. (2001). Teatro negro: A realidade de um sonho sem sono. Afro-Ásia, (2526).
https://doi.org/10.9771/aa.v0i25-26.21016
Montero, P. (2014). A teoria do simbólico de Durkheim e Lévi-Strauss: Desdobramentos
contemporâneos no estudo das religiões. Novos Estudos Cebrap, (98), 125142.
Munanga, K. (2004, janeiro). A difícil tarefa de definir quem é negro no Brasil [Entrevista].
Revista, 5156.
Peirano, M. (2003). Rituais ontem e hoje. Jorge Zahar Editora.
Silva, R. de L. (Kabilaewatala), & Peixoto, J. D. (2022). Teatro negro, performance negra: Uma
abordagem dos estudos de teatro e performance na perspectiva das mulheres negras. Revista
Brasileira de Estudos da Presença, 12(4), 120854.
Silva, V. G. da. (2000). O antropólogo e sua magia: Trabalho de campo e texto etnográfico
nas pesquisas antropológicas sobre religiões afro-brasileiras. Editora da Universidade de São
Paulo.
Sodré, M. (1988). O terreiro e a cidade: A formação social negro-brasileira. Vozes.
Sodré, M. (2001). Reinventando a cultura: A comunicação e seus produtos (4ª ed.). Vozes.
Thiago Inácio da Silva
TEATRO RITUAL: SABERES ANCESTRAIS NA CONTEMPORANEIDADE
64
Thiago Inácio da Silva
thiago.inacio1@gmail.com
Mestre em Artes pela Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR), na linha de pesquisa
Modos de Conhecimento e Processos Criativos em Artes. Bacharel em Artes Cênicas pela
Faculdade de Artes do Paraná (FAP) e jornalista graduado pelas Faculdades Integradas do
Brasil (UniBrasil), cursa Psicologia no UNICURITIBA e especialização em Política e Gestão
Cultural na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Ator, produtor cultural e
pesquisador, atua mais de duas décadas na articulação entre artes cênicas, negritude e
religiosidade afro-brasileira. Dirige a Companhia Transitória e o Terreiro Casa do Pai Chico
das Almas em Curitiba, desenvolvendo projetos que investigam o teatro ritual e a performance
negra como práticas artísticas de resistência e identidade no Sul Global.