Paulo Roberto Monteiro e Emerson Rodrigues de Brito
INTERFACES: NARRATIVAS CINEMATOGRÁFICAS E PRATICAS EDUCACIONAIS
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INTERFACES: NARRATIVAS CINEMATOGRÁFICAS E PRATICAS
EDUCACIONAIS
INTERFACES: CINEMATIC NARRATIVES AND EDUCATIONAL PRACTICES
INTERFACES: NARRATIVAS CINEMATOGRÁFICAS Y PRÁCTICAS
EDUCATIVAS
Paulo Roberto Monteiro de Araujo
Universidade Estadual de Campinas
prmaraujo@uol.com.br
Emerson Rodrigues de Brito
Universidade Presbiteriana Mackenzie
emersonbrito.arte@gmail.com
Resumo
O artigo trata das relações entre narrativas cinematográficas e os seus possíveis usos nas práticas
educacionais no ensino médio. Deste modo, a primeira parte do texto se vincula à análise de
dois filmes brasileiros, A Falecida e Toda Nudez será Castigada. Já a segunda parte se refere à
possibilidade do uso da linguagem fílmica pelo educador em suas atividades educacionais no
que tange as problemáticas humanas em nossa temporalidade brasileira e latino-americana.
Palavras-chave: Narrativa Cinematográfica. Reconhecimento. Interdisciplinaridade. Práxis
educacional.
Abstract
The article deals with the relationships between cinematographic narratives and their possible
uses in educational practices in high school. Thus, the first part of the text is linked to the
analysis of two Brazilian films, A Falecida and Toda Nudez ser Punigada. The second part
refers to the possibility of using filmic language by educators in their educational activities
regarding human problems in our Brazilian and Latin American temporality.
Keywords: Cinematic Narrative. Recognition. Interdisciplinarity. Educational praxis.
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Resumen
El artículo trata de la relación entre las narrativas cinematográficas y su posible uso en las
prácticas educativas de la enseñanza secundaria. La primera parte del artículo analiza dos
películas brasileñas, A Falecida y Toda Nudez seCastigada. La segunda parte se refiere al
posible uso del lenguaje fílmico por parte de los educadores en sus actividades educativas con
relación a los problemas humanos en nuestra temporalidad brasileña y latinoamericana.
Palabras clave: Narrativa fílmica. Reconocimiento. Interdisciplinariedad. Praxis educativa.
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A nossa preocupação no presente artigo é a analisar as interfaces entre cinema e educação. A
finalidade é apreender de modo interpretativo como a existência feminina se expressa no campo
das relações conflituosas no que se refere ao masculino, às relações de poder, seja de classe ou
não, e, ainda, às liberdades comportamentais no âmbito da sociedade brasileira contemporânea.
Tendo em vista tais relações conflituosas citadas acima, o nosso interesse é de como a
linguagem cinematográfica pode contribuir para a elaboração de práticas educacionais que
tratem da questão referente ao Reconhecimento do Outro, em sua identidade humana múltipla,
nos diversos espaços sociais e políticos.
Para desenvolver as nossas análises e interpretações partimos de dois filmes clássicos da
historiografia cinematográfica brasileira, bem como latino-americana: A Falecida (1965), de
Leon Hirszman, e Toda Nudez será castigada (1973), de Arnaldo Jabor, ambos os filmes
foram baseados na obra de Nelson Rodrigues. Os dois cineastas brasileiros partem de questões
tanto existenciais como sociais para elaborarem as suas narrativas cinematográficas. Eis o
motivo de o fundamento estético de suas narrativas ser a relação dos personagens com o seu
ser, tanto no que se refere ao psíquico, bem como ao social. A título de ilustração sobre essas
duas dimensões (psíquica e social) citamos abaixo um trecho da peça Antígona de Sófocles, no
sentido de mostrar a situação da mulher lançada nas relações de poder, em que não
minimamente o reconhecimento do
feminino.
“ISMENE
Pobre de mim! Pensa primeiro em nosso pai,
Em seu destino, abominado e desonrado,
Cegando os próprios olhos com as frementes mãos
ao descobrir os seus pecados monstruosos;
também, valendo-se de um laço retorcido,
matou-se a mãe e esposa dele era uma só
e, num terceiro golpe, nossos dois irmãos
num mesmo dia entremataram-se (coitados!),
fraternas mãos em ato de extinção recíproca.
Agora que restamos eu e tu, sozinhas,
Pensa na morte inda pior que nos aguarda
se contra a lei desacatarmos à vontade
do rei e a sua força. E não nos esqueçamos
de que somos mulheres e, por conseguinte,
não poderemos enfrentar, só nós, os homens.
Enfim, somos mandadas por mais poderosos
E só nos resta obedecer a essas ordens
e até a outras inda mais desoladoras.
Peço indulgências aos nossos mortos enterrados
mas obedeço, constrangida, aos governantes;
ter pretensões ao impossível é loucura.”
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O trecho citado acima se refere ao momento em que Ismena se recusa a ajudar a irmã, Antígona,
a enterrar um dos irmãos morto num fratricídio, o qual lutava contra o Estado. O irmão que
defendia o Estado pôde ser enterrado, porém, o que lutava contra, não; por ordem do Rei
Creonte. A finalidade ao citar o trecho acima é trazer à baila a condição do feminino frente ao
poder do masculino, representado pelo Estado. É nessa relação de poder, expressa com a peça
de Sófocles que gostaríamos de examinar à luz de dois filmes, citados anteriormente,
baseados em duas peças de Nelson Rodrigues: Toda nudez será castigada e A falecida.
A questão a ser levantada em relação ao feminino se funda epistemologicamente na teoria do
Reconhecimento em Charles Taylor. O reconhecimento do outro é o ponto de inflexão na
cultura contemporânea ocidental. Não é por acaso que uma política do reconhecimento advém
da Revolução Francesa, em que todos as identidades devem ser reconhecidas em suas
diversidades.
Se a Revolução Francesa possibilitou o advento das políticas do reconhecimento, somente no
século XX ganha força, com os movimentos dos direitos civis, nos Estados Unidos:
movimentos gays, negros e feministas. Tais movimentos criaram aquilo que Taylor chama de
um Vocabulário de Valor cuja finalidade é elaborar modos de identidades humanas numa
determinação fundada nas expressões comunitárias. Não é à toa que Lacan diz que a mulher
não existe, e quando ele diz isso, ele quer dizer que é preciso que o feminino se constitua como
sujeito desejante, sujeito dos seus próprios desejos. Não é por acaso que Ismena diz no trecho
citado: “E não nos esqueçamos de que somos mulheres e, por conseguinte, não poderemos
enfrentar, só nós, os homens”.
Quando Ismena diz que não se pode enfrentar os homens, ela tem consciência que não é sujeito
dos seus próprios desejos, pois seus desejos são os desejos do outro. Antígona se recusa a
aceitar o desejo do outro (do Estado, como determinação do Masculino), no entanto, ela ainda
não possui um vocabulário próprio do sujeito feminino, pois os seus desejos são determinados
por obrigações ético-familiares, originados no cuidado em relação à família. Apesar de
Antígona se contrapor aos desejos do masculino, ela ainda não se constituiu como sujeito dos
seus próprios desejos, pois estes estão fundados na família, como cuidado. Mesmo com toda a
sua recusa ao desejo do masculino, na figura de Creonte, Antígona ainda não se constitui como
sujeito de seus desejos; pois não construiu um vocabulário valorativo do feminino em si mesma
e para si mesma.
Eis o motivo de Geni (interpretada pela atriz Darlene Glória), personagem de Toda Nudez será
castigada, não ser sujeito de seus próprios desejos, apesar das suas não repressões sexuais.
Geni não tem problema com a sua sexualidade, porém, é manipulada pelo masculino: Herculano
(personagem que se tornará seu esposo interpretado pelo ator Paulo Porto), Patrício
(personagem irmão de Herculano interpretado pelo ator Paulo César Peréio) e Serginho
(personagem filho de Herculano interpretado pelo ator Paulo Sacks). Mesmo quando Geni se
suicida, como forma de ação desejante, ela ainda não é sujeito; pois sua ação está na passividade
da vingança em relação ao espírito burguês da família do marido. Para ilustrar (Fig. 01)
podemos citar o início da peça em que Geni deixa uma gravação para o seu marido. Segue o
trecho abaixo:
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“GENI – Herculano, quem te fala é uma morta. Eu morri. Me matei.
(....)
GENI Herculano, ouve até o fim. Você pensa que sabe muito. O que você sabe é tão pouco!
(com triunfante crueldade) (violenta) uma coisa que você não sabe, nem desconfia, uma
coisa que você vai saber agora, contada por mim e que é tudo. Falo pra ti e pra mim mesma.
(dilacerada) (ressentida e séria) Escuta, meu marido. Uma noite em tua casa”.
(RODRIGUES, 1994: p.1052).
Figura 01. Cena do Suicídio de Geni. Ela observa a gilete com a qual corta os seios.
Fonte: Canal do
Youtube de André Fernandes Abreu | https://www.youtube.com/watch?v=gkmYbWkhK5U | Acesso em
01.05.2024 às 19h
Apesar de Geni trazer à tona o espírito doentio da família de Herculano, dando a impressão de
possuir uma espécie consciência de si (SelbstBewusstensein) em um sentido conceitual
hegeliano, ela permanece presa às determinações do poder do masculino, no caso, em seu viés
burguês conservador. Deste modo, não adianta Geni desmascarar a patologia burguesa da
família de Herculano, pois ela continua não sendo reconhecida como sujeito. Mesmo se casando
com Herculano, Geni ainda é uma prostituta, e como tal não é sujeito de seus próprios desejos.
Ela permanece com o mesmo status identitário de quando Herculano a conheceu no prostíbulo.
Abaixo o trecho em que Herculano ofende Geni após ter feito sexo com ela (Fig. 02):
“GENI – Não me humilhe que eu te.
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HERCULANO (cortando) Ninguém te humilha! Você está debaixo de tudo! Você é um
mictório! Público! Público!”
(RODRIGUES, 1994:1060).
Figura 02. Cena no Prostíbulo onde Herculano ofende Geni.
Fonte: Canal do Youtube de André Fernandes Abreu | https://www.youtube.com/watch?v=gkmYbWkhK5U |
Acesso em 01.05.2024 às 19h
No final das contas, por assim dizer, a morte de Geni é em vão. Quem é castigado não é nem
Herculano e os membros de sua família, principalmente Serginho (o filho que se tornara amante
de Geni) e Patrício (aquele que arma toda a trama para o encontro de Geni com Herculano),
mas sim Geni. Ela é mero objeto sob a forma de nudez corporal com o intuito de satisfazer o
outro. Geni é objeto, não sujeito.
Embora Jabor não modifique o texto original de Nelson Rodrigues, ele consegue expressar em
sua estética imagética cinematográfica a problemática de um desejo que tenta se expressar
(Geni), mas que é sucumbido não somente pela força do masculino burguês (em seu aspecto
social e de classe), mas antes pela falta do sujeito feminino que ainda não se constituiu por meio
de um vocabulário de valor referencial. Não um vocabulário valorativo que possa servir
como referencial significativo para a construção de uma identidade feminina. É o que ocorre
também com o filme de Leon Hirszman, A Falecida, baseado na peça de Nelson Rodrigues.
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Leon Hirszman tenta dar um caráter marxista à obra de Nelson Rodrigues por meio da ideia de
alienação dos personagens como Tuninho (marido de Zulmira interpretado pelo ator Ivan
Cândido), que se limita a discutir futebol e fazer apostas com os amigos no bar. Tal alienação
de Tuninho se expressa no trecho abaixo da peça, que Hirszman usa em seu filme (Fig. 03).
“(Consumada a aposta, Toninho exulta)
TUNINHO Vou te dizer mais: estou desempregado e outros bichos. Quer dizer, na última
lona. Mas estou tão certo, tão certo, que vai ser uma barbada daquelas que te juro, sob minha
palavra de honra, que se eu tivesse dinheiro, sabes o que eu fazia, no domingo, queres saber?
OROMAR Você é bom de bico!
(Tuninho está numa verdadeira euforia)
TUNINHO Espera, ouve o resto, seu zebu! Eu entrava no Maracanã. Muito bem. Vamos dar,
de barato, que umas 100 mil pessoas assistam ao jogo.
(....)
TUNINHO Seja 150 ou 200 mil pessoas. Não importa. Até morreu o Neves. Pois eu, se
tivesse dinheiro, dinheiro meu, no bolso, eu, sozinho, apostava com 200 mil pessoas no Vasco.
Havia de esfregar a gaita assim, na cara das 200 mil pessoas, desacatando: “Seus cabeças-
de-bagre! Dois de vantagem e sou Vasco!” Te juro que ia fazer a minha independência, que ia
lavar a égua!”
(RODRIGUES, 1994: 36).
Figura 03. Cena em que Tuninho faz uma hipotética aposta com os colegas em relação a vitória do Vasco sobre o
Fluminense no Maracanã.
Fonte: Canal do Youtube Cine Antigua | https://www.youtube.com/watch?v=HsZxjCPIC9E&t=443s | Acesso
em 01.05.2024 às 19h
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É desse universo masculino alienante da classe trabalhadora da zona norte carioca que Zulmira
(interpretada pela atriz Fernanda Montenegro) tenta escapar por meio do adultério. No entanto,
Zulmira replica em suas ações desejantes as fantasias alienantes do universo masculino da
classe trabalhadora desempregada. Ao ser descoberta em seu adultério por uma vizinha,
Zulmira aprofunda a sua alienação como réplica da alienação do universo masculino suburbano
por meio da fantasia de ter um funeral de luxo. Só pela morte Zulmira crê mostrar o seu poder
à vizinha seja mostrando os seios ao ser despida como defunta (a vizinha o tem um dos seios)
seja tendo um funeral de luxo (que a vizinha supostamente veria). Zulmira não percebe que está
enredada no universo masculino alienante da classe trabalhadora da zona norte carioca (Fig. 04
e 05).
Figura 04. Cena de Zulmira com o amante.
Fonte: Canal do Youtube Cine Antigua | https://www.youtube.com/watch?v=HsZxjCPIC9E&t=443s | Acesso
em 01.05.2024 às 19h
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Figura 05. Cena do cortejo fúnebre de Zulmira cujo caixão é o mais barato, contrariando o seu desejo de ter um
caixão caro.
Fonte: Canal do Youtube Cine Antigua | https://www.youtube.com/watch?v=HsZxjCPIC9E&t=443s | Acesso
em 01.05.2024 às 19h
A falta de reconhecimento por parte do masculino no interior da narrativa cinematográfica tanto
de Leon Hirszman como de Arnaldo Jabor faz com que as mulheres se sintam desajustadas em
suas atitudes. A imagem do feminino é vista pelo masculino como algo que não se deve dar
importância. Daí a preocupação de nos voltarmos para analisar esse ponto de vista do masculina
no que se refere à imagem do feminino. Segundo Didi-Huberman:
‘A imagem se caracteriza por sua intermitência, sua fragilidade, seu intervalo de
aparições, de desaparecimentos, de reaparições e de redesaparecimentos
incessantes. É, então, uma coisa bem diferente pensar a saída messiânica como
imagem (diante da qual não se poderá durante muito tempo mais acalentar ilusões,
uma vez que ela desaparecerá logo) ou como horizonte (que apela para uma crença
unilateral, orientada, apoiada no pensamento de um além permanente, na espera de
seu futuro sempre). A imagem é pouca coisa: resto ou fissura (fêlure). Um acidente
do tempo que a torna momentaneamente visível ou legível. Enquanto o horizonte
nos promete o todo, constantemente oculto atrás de sua grande “linha” de fuga.’
Didi-Huberman, 2011: 87.
A questão das imagens do feminino ao longo dos filmes dos diretores brasileiros traz esse
fenômeno das fissuras que Didi-Huberman nos fala. Diferentemente, tanto da ideia messiânica
da imagem cuja determinação é o seu desaparecimento ao final de um destino, como daquela
vinculada ao horizonte em que sempre algo para ser desvendado, sempre um além que se
encontra oculto. As fissuras das imagens são uma espécie de claridade que surge aos nossos
olhos com o objetivo de nos possibilitar compreender os seus significados vivenciais na esfera
da existência humana. Daí as fissuras serem as sobrevivências das experiências humanas. Tais
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sobrevivências guardam em si e para si a possibilidade de irmos ao encontro de problemáticas
que tendo sua existência empírica no passado ainda nos perturba em nosso presente.
Deste modo, os filmes de Hirszman e Jabor, ainda nos toca, por assim dizer, com a problemática
das relações de poder, configurado nas relações entre o masculino e o feminino. A nossa
preocupação aqui não é desenvolver um discurso epistêmico feminista, mas sim investigar as
determinações de poder que surgem nessas relações. Daí Didi-Huberman defender que a ideia
de horizonte tende a protelar os esclarecimentos em torno das experiências humanas ao longo
da história: “Um horizonte, como seu nome o indica, em grego, é ao mesmo tempo a abertura
e o limite da abertura que define ora um progresso infinito, ora uma espera (op.cit. p.87). Por
outro lado, o historiador francês tenta compreender o posicionamento de pensadores como
Agamben em relação ao conceito de Horizonte.
‘A complexidade do pensamento de Agamben talvez se deva ao fato de que o regime
da imagem e o do horizonte se encontram constantemente misturado ou sub-
repticiamente associados, como se o primeiro que é um regime apenas para liberar
o espaço imenso do segundo, regime do longínquo, do apogeu, do absoluto.
Enquanto leitor de Benjamin, Agamben é um filósofo da imagem (um pouco como
Pasolini quando construía seus filmes por fragmentos ou em gros plans), daí essa
maneira de filologia pela qual descobrimos, frequentemente com encantamento, a
potência oculta do menor gesto, da menor letra, do menor rosto, do menor lampejo.
Mas, enquanto leitor de Heidegger, Agamben procura o horizonte atrás de cada
imagem (um pouco como Pasolini quando decidiu julgar o todo e os fins da
civilização na qual vivia). Ora, esse horizonte modifica infalivelmente o cosmos
metafísico, o sistema filosófico, o corpus jurídico ou o dogma teológico’
Didi-Huberman, 2011: 87/88.
Didi-Huberman, mesmo discernindo a perspectiva epistemológica de Agamben quanto à
relação entre imagem e horizonte, nos diz que afinal o que interessa é:
‘(...) o mundo dos fins que se abre à nossa situação contemporânea. Mas tudo isso
sobre o fundo de uma terrível, de uma desesperante ou desesperada, de uma
inaceitável equivalência política dos extremos imersos no mesmo horizonte, na
mesma claridade ofuscante do poder” (op. cit, p. 89).
A crítica de Didi-Huberman a Agamben é que ele ao ficar numa suposta síntese entre imagem
e horizonte, em que este último engole o primeiro, acaba como dando abertura para os
encobrimentos do poder; pois este termina como que manipulando o seu próprio papel nas
relações humanas. Daí o historiador francês salientar: “O que desaparece nessa feroz luz do
poder não é senão a menor imagem ou lampejo de contrapoder” (op. cit. p.91).
Eis o motivo de tanto Zulmira como Geni terem o seu contrapoder a partir do momento que
desaparecem do universo masculino. Seja do universo masculino da classe trabalhadora,
Zulmira, seja do universo masculino burguês, Geni. As imagens de ambas personagens dão
prova que o feminino pode resistir ao sistema sociocultural do masculino (Figuras 06 e 07).
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Figuras 06 e 07. Cena onde Zulmira toma um banho de chuva para pegar um pneumonia (momento que
a personagem demonstra liberdade). A outra cena, Geni casando, demonstrando a possibilidade de superar a sua
situação social como prostituta.
Fonte: Canal do Youtube Cine Antigua | https://www.youtube.com/watch?v=HsZxjCPIC9E&t=443s | Acesso
em 01.05.2024 às 19h.
Fonte: Canal do Youtube de André Fernandes Abreu | https://www.youtube.com/watch?v=gkmYbWkhK5U |
Acesso em 01.05.2024 às 19h
Se Zulmira é aquela que tem de aprender a ter ao mesmo tempo o saber e o instinto do
contrapoder à alienação do marido desempregado, Geni, de Toda Nudez será Castigada, é
aquela que aparentemente está lançada na fragilidade tanto social como existencial,
impossibilitando-a assim de ter qualquer aprendizado. Apesar de a tônica de Nelson Rodrigues
ser a estrutura repressora dos comportamentos burgueses da classe média alta carioca, Jabor, o
diretor do filme, consegue explorar a imagem do feminino de Geni, em toda a sua fragilidade
psíquica e social. Por outro lado, apesar da fragilidade de Geni, Herculano, embora represente
a força do masculino burguês, também possui uma fraqueza. Ele demonstra a sua fragilidade
desde o início do filme, que ocorre em flashback. Tal fragilidade se apresenta, não partir da dor
pela perda da esposa morta, a mais de um ano, porém, quando, ao ver o retrato de Geni, vai ao
seu encontro no Prostíbulo onde ela trabalhava. Todo o seu princípio de realidade foge, por
assim dizer, de suas mãos. Como salienta Marcuse:
“Com o estabelecimento do princípio de realidade, o ser humano que, sob o
princípio de prazer, dificilmente pouco mais seria do que um feixe de impulsos
animais, converte-se num ego organizado. Esforça-se por obter “o que é útil” e o
que pode ser obtido sem prejuízo para si próprio e para o seu meio vital. Sob o
princípio de realidade, o ser humano desenvolve a função da razão: aprende a
“examinar” a realidade, a distinguir entre bom e mau, verdadeiro e falso, útil e
prejudicial. O homem adquire as faculdades de atenção, memória e discernimento.
Torna-se um sujeito consciente, pensante, equipado para uma racionalidade que lhe
é imposta de fora. Apenas um modo de atividade é “separado” da nova organização
do aparelho mental e conserva-se livre do domínio do princípio de realidade: é a
fantasia, que está “protegida das alterações culturais” e mantém-se vinculada ao
princípio de prazer. Em tudo o mais, o aparelho mental está subordinado ao
princípio de realidade. A função de “descarga motora”, que, durante a supremacia
do princípio de prazer, “servira para aliviar o aparelho mental da acumulação
excessiva de estímulos”, é agora empregada na “alteração apropriada da
realidade”: é convertida em ação”. (MARCUSE, 1981: 35).
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Entregue ao princípio de prazer, Herculano não age mais dentro de ações pautadas em sua
sobrevivência como aquele que é o chefe da família. Sua postura conservadora vai se corroendo
cada vez mais ao se envolver com Geni. No entanto, ao ser arrastado pelo princípio de prazer
por meio da figura da prostituta Geni, Herculano mantém o seu poder frente à família. É ele
quem articula, mesmo que de forma ingênua, como inserir Geni no seio de sua família. Embora
orientada pelo irmão de Herculano, Geni quer de fato se casar com aquele homem, representante
do conservadorismo burguês carioca. No final, ela busca o reconhecimento social, tentando
superar assim a sua condição de prostituta. No entanto, ao longo da narrativa fílmica, Geni vai
sendo envolvida pela família, principalmente por Serginho, filho de Herculano, que se torna
seu amante.
Se a fragilidade de Herculano está no seu assumir o princípio de prazer, a de Geni está em seu
próprio romantismo de querer ser aceita socialmente como mulher casada e respeitável, dentro
dos padrões socioculturais de uma família conservadora e burguesa. Ela não consegue perceber
que desde o início do romance com Herculano foi usada numa espécie de joguete, seja nas mãos
do irmão manipulador, do futuro marido, bem como do enteado Serginho. A condição social
de Geni não lhe permite nenhum tipo de ação que lhe possibilite elaborar formas de contrapoder
em relação ao masculino. Ao contrário, Geni é castigada, não conseguindo qualquer tipo de
redenção.
A única forma de contrapoder que Geni pode realizar é o seu suicídio. No entanto, tal suicídio
não é o suficiente para se contrapor ao poder masculino. Ao cortar seus próprios seios, ela se
sacrifica em vão; pois Geni contribuiu para a vingança tanto do irmão como de Serginho em
relação ao chefe da família, Herculano. Este, por sua vez, após ter a experiência do princípio de
prazer, está aberto para novos prazeres. Herculano sabe que pode sentir a dor pela perda da
segunda esposa, porém compreende também que no final das contas é o seu prazer que está em
jogo. Geni como expressão da liberdade libidinal tem que ser expurgada, pois seus desejos
significa a própria destruição da racionalidade civilizadora fundada naquilo que é útil, ou seja,
utilitário para a manutenção da vida em sua dinâmica social.
É a partir da análise e interpretação desses dois clássicos da cinematografia latino-americana
que podemos apreender elementos da linguagem artística para elaborar formas
interdisciplinares em relação ao universo educacional. Não se trata de criar novos conteúdos
disciplinares para uma suposta grade curricular, principalmente nas últimas séries do ensino
médio. Porém, do que se trata é de possibilitar o educador fazer relações entre a linguagem
artística, no caso presente cinematográfica, e a sua disciplina, que a princípio está situada nas
áreas de humanidades, porém, não necessariamente.
Como vimos, os filmes tratados no presente artigo estão vinculados à problemática do
reconhecimento das identidades femininas no âmbito psíquico, social, político e histórico. É
importante, que antes de tudo, por assim dizer, o educador (não importa como ele compreende
sua própria identidade de gênero) procure aumentar o seu acervo cultural. Daí, a necessidade
de investigar ou procurar filmes como A Falecida ou Toda Nudez será Castigada para pensar
quais as questões humanas podem ser tratadas, didaticamente, em atividades educacionais.
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No caso do Brasil, e, provavelmente, da América Latina, temos um alto índice de feminicídio.
Além desse tipo de crime, também temos o não reconhecimento do feminino, e atualmente,
podemos nos referir também ao feminino trans, nas diversas áreas dos direitos como, por
exemplo, a igualdade salarial. Deste modo, quando tratamos a problemática do
Reconhecimento com os alunos, a finalidade é que eles possam amadurecer um saber sobre o
significado do que é humano, em suas múltiplas possibilidades de ser. Não é por acaso, que o
tema proposto neste artigo sobre o Reconhecimento do Feminino pode ser ampliando.
Apesar de os educadores sofrerem todo tipo de pressão, pode-se salientar ainda, que nos nossos
dias, também as pressões que ocorrem por meio das chamadas Guerras Culturais, não
podemos esquecer que a tarefa de formar não pode ocorrer de modo manipulador. Daí a
importância de se pensar a práxis educativa, no sentido que o processo de formação não se
limita a transmissão de conteúdos disciplinares.
Um autor que pode auxiliar com essa tarefa de uma práxis educativa é o pensador espanhol
Gimeno Sacristán; pois o educador precisa estar consciente da sua própria formação para poder
se posicionar politicamente no espaço das práticas educacionais. Em seu livro Poderes
Instáveis em Educação, Sacristán nos chama atenção para a formação do educador como
narrativa da construção da sua identidade como sujeito que age no espaço educacional da
escola.
Embora as ações realizadas pelos sujeitos, em suas particularidades, nos espaços escolares,
sejam consideradas frágeis, tais ações deixam suas marcas no que concerne à formação daquele
que está no processo de aprendizado. Como salienta Sacristán:
‘(...) gera efeitos, expectativas, reações, experiência e história, porque, como afirma
Arendt, tem a condição de ser indelével”, isto é, que não pode ser apagado, que não
pode se extinguir, que o tempo não corrói, permanente’. (SACRISTÁN, 1999:70).
As marcas educacionais não podem ser apagadas, mesmo que se apresentem como frágeis.
Aqueles que produzem tais marcas como sujeitos formadores, são os responsáveis pela
instauração de práticas de ensino-aprendizagem, construídas historicamente, “já que cada ação
traz consigo a marca de outras ações prévias” (1999, p.70). As marcas são uma espécie de
Weltanschauung, isto é, de Visão de Mundo cuja tônica é dar orientação para aquele que
apreendeu os significados que lhe foram passados por meio das práticas educacionais em todas
as suas determinações, escolares ou não. Sendo assim, o trabalho interdisciplinar proposto no
presente artigo tem como propósito gerar novas práticas educacionais cujo objetivo é
possibilitar que o aluno possa amadurecer tanto o intelecto como o emocional.
É por meio do entrelaçamento entre linguagem artística (mais especificamente cinematográfica)
e práxis educacional, que procuramos desenvolver ao longo do texto um modo de pensar de
como os educadores do ensino médio podem agir, como sujeitos formadores, sem o caráter
manipulador que muitas vezes ocorrem no processo educacional. Finalmente, o nosso objetivo
foi alargar o horizonte interdisciplinar entre Arte e Educação no espaço escolar no Brasil, bem
como na América-Latina.
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Referências
Araujo, P. (2004). Charles Taylor: para uma ética do reconhecimento. São Paulo: Editora
Loyola, 2004.
Didi-Huberman, G. (2011). Sobrevivência dos Vaga-Lumes. Belo-Horizonte: Editora UFMG,
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Didi-Huberman, G. (2013). A Imagem Sobrevivente História Da Arte E Tempo Dos
Fantasmas Segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro. Contraponto, 2013.
Marcus, H. (1981). Eros e Civilização Uma Interpretação Filosófica do Pensamento de
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Rodrigues, N. (1994). Toda Nudez será Castigada. In: Teatro Completo: Rio de Janeiro. Editora
Nova Aguilar, 1994.
Taylor, C. (1994). A Política de Reconhecimento. In: MULTICULTURALISMO Examinando
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Sacristán, J. G. (1999). Poderes Instáveis em Educação: Porto Alegre. Artmed Editora, 1999.
Filmografia
A Falecida. Direção de Leon Hirszman | Roteiristas Eduardo Coutinho, Leon Hirszman e
Nelson Rodrigues | Artistas Fernanda Montenegro, Paulo Gracindo e Ivan Cândido | Brasil:
Meta Produções Cinematográficas, 1965.
Toda Nudez será castigada. Direção de Arnaldo Jabor | Roteiristas Arnaldo Jabor e Nelson
Rodrigues | Artistas Paulo Porto, Darlene Glória e Elza Gomes | Brasil: Produções
Cinematográficas Roberto Farias, 1973.
Paulo Roberto Monteiro e Emerson Rodrigues de Brito
INTERFACES: NARRATIVAS CINEMATOGRÁFICAS E PRATICAS EDUCACIONAIS
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Dr. Paulo Roberto Monteiro
Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (2003). Foi professor do
Programa de Pós-Graduação Stricto Senso em Educação, Arte e História da Cultura na
Universidade Presbiteriana Mackenzie (1991-2003). Atua principalmente nas seguintes áreas:
História Cultural, Cinema Contemporâneos, Estética e Filosofia Política. Membro do Conselho
Universitário da UPM (2014-2016); autor de diversos artigos e livros, entre eles, o mais recente:
Contemporaneidade: convergências e divergências. São Paulo: editora LiberArs, 2023.
Dr. Emerson Rodrigues de Brito
Doutor em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie
[2018]. Mestre em Linguística - Comunicação e Semiótica pela Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul [2009]. Especialização em Métodos e Técnicas de Ensino pela Universidade para
o Desenvolvimento do Estado e da região do Pantanal [2000] e Aperfeiçoamento em Estudos
Paulo Roberto Monteiro e Emerson Rodrigues de Brito
INTERFACES: NARRATIVAS CINEMATOGRÁFICAS E PRATICAS EDUCACIONAIS
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de Política e Estratégia de Guerra pela Associação dos Diplomados da Escola Superior de
Guerra [1998]. Possui graduação em Artes Visuais pela Universidade Federal de Mato Grosso
do Sul [1996]. Com experiência na área de linguagens artísticas e computacionais, atuando
principalmente nos seguintes temas: Artes, Tecnologia; Educação, Contemporâneo, Design,
Comunicação Social. Professor do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo nos cursos
de Graduação em Comunicação e Design e Pós-Graduação em Direção de Arte e Cenografia.
Também designer gráfico e expográfico. Autor de vários artigos em revistas especializadas nas
áreas de arte e educação.