
Augusto Godinho Vespucci
A CONCEPÇÃO DE NATUREZA NAS GRAVURAS DE JOHANNES STRADANUS: UM OLHAR
ATRAVÉS DA INTERCULTURALIDADE CRÍTICA
A Arte renascentista que, para Vasari, deveria ser baseada no realismo, se torna uma das
capacidades que a humanidade teria a seu dispor de alcançar os feitos divinos, recriando a
Natureza assim como Deus o fizera uma vez na criação do mundo. Existe, portanto, uma
alteração na concepção da Natureza baseada no avanço tecno-científico do século XVI, na
medida em que, nesse momento, o mundo não seria mais somente inspiração, mas recriação.
A invenção da pintura a base de óleo - por exemplo - creditada pelos ocidentais a Jan Van
Eyck (1390-1441), pintor de origem belga, teria sido um dos principais avanços técnicos
responsáveis por permitir às mãos humanas a possibilidade de recriação da Natureza, já que as
tintas feitas com base no azeite demoravam mais a secar em relação a tinta feita a base de
clara de ovo, propiciando aos artistas mais tempo de pintura e maior sobreposição de tons
para imitar a realidade. O próprio Stradanus escreveu, em uma de suas gravuras, que a tinta a
base de óleo era uma conveniência aos artistas, pois melhorava seus trabalhos e era uma
grandiosa invenção (Stradanus, em Nova Reperta, ca. 1585)
Albrecht Dürer, conhecido pintor e gravurista alemão (1471-1528) compartilhava dessa
perspectiva quando disse que ―Muitos artistas pintam figuras de si mesmos e os grandes
artistas têm o poder de criação como o de Deus. Pois um bom pintor está internamente cheio
de figuras‖ (Dürer, Apud Hall, 2014: 112). Um artista valorizado, nesse momento, era aquele
que tinha grande inventividade, ou seja, criava figuras e imagens a partir de seus
pensamentos. Mesmo Vasari elogia Stradanus – seu aprendiz - nesse sentido ao dizer que
―Giovanni della Strada, um flamengo, que [tem] bom desenho, a melhor fantasia, muita
invenção e uma boa maneira de colorir‖ (Vasari, 2009: 18, tradução nossa). A invenção,
portanto, era a capacidade de recriar a Natureza sem depender de pensamentos alheios,
responsabilizando apenas o artista por sua obra, numa característica quase divina.
Num sentido semelhante, mas em relação a outro avanço tecno-científico, Johannes Stradanus
descreve, em uma de suas gravuras, o uso da pólvora - artefato de criação humana - como
―Trovão e relâmpago feitos pelas mãos‖, atribuindo à humanidade uma característica que
apenas Deus havia sido capaz de criar: o poder de um raio. Pelo barulho que produziam e a
destruição da qual eram capazes, os canhões que utilizavam pólvora eram constantemente
associados aos relâmpagos no imaginário europeu. O conhecido poeta italiano Francisco
Petrarca (1304-1374) afirmou: ―Não bastava que o céu trovejasse a ira de Deus imortal, era
necessário que o homúnculo [...] trovejasse também da terra: a loucura humana imitou o
inimitável raio‖ (Petrarca, Apud Frugoni, 2007: 124).
A Natureza, portanto, era ―imitável‖ na medida em que os seres humanos logravam forças
semelhantes ao poder divino, seja na (re)criação ou na destruição. Na gravura abaixo, que é a
de número 3 da série Nova Reperta, Stradanus representa, ao mesmo tempo, a criação da
pólvora, a produção de canhões e a utilização final, identificada, no canto superior direito da
imagem, pela destruição das paredes de um castelo pelas pesadas esferas de ferro. A Natureza,
nesse sentido, se aproxima cada vez mais do que Francis Bacon (1561-1626) chamaria, em
menos de trinta anos depois, de ―Novum Organum‖, feito para ser explorado, conhecido e que
permitia a repetição de um determinado evento a fim de se chegar à delimitação de um
experimento científico, totalmente controlado e organizado pelas mãos humanas (Quijano,