Augusto Godinho Vespucci
A CONCEPÇÃO DE NATUREZA NAS GRAVURAS DE JOHANNES STRADANUS: UM OLHAR
ATRAVÉS DA INTERCULTURALIDADE CRÍTICA
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A CONCEPÇÃO DE NATUREZA NAS GRAVURAS DE JOHANNES STRADANUS:
UM OLHAR ATRAVÉS DA INTERCULTURALIDADE CRÍTICA
LA CONCEPCIÓN DE NATURALEZA EN LOS GRABADOS DE JOHANNES
STRADANUS: UNA MIRADA A TRAVÉS DE LA INTERCULTURALIDAD
CRÍTICA
THE CONCEPTION OF NATURE IN THE ENGRAVINGS OF JOHANNES
STRADANUS: A LOOK THROUGH CRITICAL INTERCULTURALITY
Augusto Godinho Vespucci
Doutorando PPGH-UFG
Bolsista CAPES.
augustovespucci1@hotmail.com
Resumo
Johannes Stradanus (1523-1605) foi um gravurista belga que viveu na Itália ao longo de
grande parte do século XVI. Suas obras abordam temas diversos que vão desde as caçadas
realizadas pela família Médici, trechos bíblicos, descrição de raças de cavalos até a
apresentação de inventos consagrados à Modernidade pelos ocidentais. Nesse artigo,
analisamos, sob a ótica da Interculturalidade Crítica, algumas gravuras do autor que retratam,
direta ou indiretamente, a Natureza. A concepção de Natureza no Ocidente em finais do
século XVI e início do XVII se molda conjuntamente aos avanços tecno-científicos
alcançados sob a égide da invenção de novos instrumentos capazes de dominar a Natureza e
atingir um suposto pináculo da humanidade. Para Johannes Stradanus, o triunfo da
Modernidade perante os tempos passados se na medida em que as capacidades técnicas de
controle da Natureza se tornam passíveis de utilização como somente Deus pudera antes.
Palavras-chave: Johannes Stradanus; Natureza; Interculturalidade Crítica.
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Resumen
Johannes Stradanus (1523-1605) fue un grabador belga que vivió en Italia durante la mayor
parte del siglo XVI. Sus obras abordan diversos temas que van desde las cacerías llevadas a
cabo por la familia Médici, extractos bíblicos, descripciones de razas de caballos, hasta la
presentación de inventos dedicados a la Modernidad por los occidentales. En este artículo
analizamos, desde la perspectiva de la Interculturalidad Crítica, algunos grabados del autor
que retratan, directa o indirectamente, la Naturaleza. En Occidente, la concepción de la
Naturaleza a finales del siglo XVI y principios del XVII se moldea junto con los avances
tecnocientíficos logrados bajo la égida de la invención de nuevos instrumentos capaces de
dominar la Naturaleza y alcanzar un supuesto pináculo de la humanidad. Para Johannes
Stradanus, el triunfo de la Modernidad sobre tiempos pasados tiene lugar en la medida en que
las capacidades técnicas del control de la Naturaleza se vuelven capaces de ser utilizadas
como solo Dios podía antes.
Palabras-clave: Johannes Stradanus; Naturaleza; Interculturalidad Crítica.
Abstract
Johannes Stradanus (1523-1605) was a Belgian engraver who lived in Italy for most of the
16th century. His works address various topics ranging from the hunts carried out by the
Medici family, biblical extracts, descriptions of horse breeds, to the presentation of inventions
dedicated to Modernity by Westerners. In this article we analyze, from the perspective of
Critical Interculturality, some engravings by the author that directly or indirectly portray
Nature. In the West, the conception of Nature at the end of the 16th century and the beginning
of the 17th century is shaped together with the techno-scientific advances achieved under the
aegis of the invention of new instruments capable of dominating Nature and reaching a
supposed pinnacle of humanity. For Johannes Stradanus, the triumph of Modernity over past
times takes place to the extent that the technical capacities to control Nature become capable
of being used as only God could before.
Keywords: Johannes Stradanus; Nature; Critical Interculturality.
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Introdução
Em 1585, o gravurista belga Johannes Stradanus (1523-1605) produziu os desenhos que
seriam publicados por Philips Galle (1537-1612) em uma série de gravuras intitulada de Nova
Reperta
1
, a pedido de Francisco de Médici (1541-1587), o Grão-duque de Toscana, na Itália.
A série de gravuras, publicada inicialmente com apenas dez imagens, obteve grande sucesso
entre os anos de 1585 e 1590 e chegou a ser republicada mais quatro vezes nesse período,
com a adição de outras dez gravuras, completando vinte imagens no total (Markey, 2020: 26).
A série representa de forma visual as ―novas invenções‖ da Modernidade que vão desde itens
de uso cotidiano como o azeite e os óculos até a invenção de um novo continente, a
América.
Na Europa do século XVI, na qual os índices de alfabetização eram baixos (Chartier, 1996:
79-85), a visualização das imagens gravadas se tornou um sistema de comunicação na qual
não os letrados participavam, mas mesmo aqueles que não faziam parte dos ciclos de
intelectuais e cientistas podiam compartilhar das perspectivas desenhadas por Stradanus. As
gravuras, por serem itens de relativo baixo preço - por sua reprodutibilidade facilitada em
relação a outras imagens -, eram vendidas em folhetos ou folhas avulsas e coladas em portas
de estabelecimentos como oficinas, tabernas, lojas e mesmo nas casas, como decoração de
móveis. Os frontispícios das séries de gravuras levavam observadores a folhear as imagens da
sequência na medida em que despertavam o interesse pelo olhar (Souza & Santos, 2020: 1-
12).
O preço das gravuras variava e, muitas vezes, séries de gravura como a Nova Reperta podiam
ser compradas pelo valor de um dia de trabalho de um pedreiro em Antuérpia, nos Países
Baixos (Bowen, 2020: 41-55). Isso significa dizer que não eram itens reservados à crescente
burguesia ou à nobreza ocidental e, portanto, eram observadas por grande parte da população
europeia. Johannes Stradanus teve suas obras publicadas por toda a Europa, mas
principalmente na Itália e nos Províncias dos Países Baixos e obteve relativa fama mesmo em
vida (Vanucci, 2011: 5).
Johannes Stradanus passou a maior parte de sua vida adulta em Florença, primeiramente
como aprendiz de pintura de Giorgio Vasari (1511-1574) e, posteriormente, como gravurista
autônomo da corte dos Médici (Vanucci, 2011: 6). A maioria de suas obras foi produzida num
complexo emaranhado de valores renascentistas compartilhado por diversos artistas e
pensadores italianos que, de certa forma, dialogaram direta e indiretamente com a concepção
de Natureza de Stradanus.
Os italianos, contudo, não estavam isolados e, por isso, não formaram sua concepção de
mundo de forma independente. Na verdade, o diálogo dos europeus de séculos anteriores com
outras culturas, como a árabe, a chinesa e a indiana produziu o que Jack Goody chamou de
―Renascimentos‖ - no plural -, mas que, ao longo do século XVI, foi transformado numa
1
“Novas invenções”, do latim.
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unicidade a partir de uma perspectiva teleológica, numa invenção exclusivamente europeia e,
mais especificamente, italiana (Goody, 2011: 12).
Com a invasão da América, protagonizada por navegantes italianos Cristóvão Colombo,
genovês e Américo Vespúcio, florentino , o eixo econômico do mundo se transladou do
Mediterrâneo para o Oceano Atlântico. Essa mudança não foi bem recebida pelos italianos
que, apesar de terem contribuído para o encontro e a conquista da América, não obtiveram
parcelas territoriais de colonização, principalmente por não constituírem um reino unificado
como eram os estabelecidos países ibéricos. Isso será notado em produções como a do
florentino Francisco Guicciardini (1483-1540) que escreveu o seu História da Itália‖,
produzido entre 1537 e 1540, dizendo que aqueles que realmente deveriam ser glorificados
pela conquista da América deveriam ser os italianos, porque os espanhóis e portugueses
buscavam apenas o ouro. Também, nesse mesmo sentido, Pietro Bembo (1470-1547),
historiador e cardeal veneziano, apontou que a empreitada dos portugueses e espanhóis foi
―um terrível evento nunca imaginado pelas pessoas‖, demonstrando sua indignação perante a
colonização por parte dos ibéricos. Mesmo atualmente é possível notarmos reflexos desse
descontentamento italiano do século XVI sobre a conquista da América, pois os italianos são
responsáveis por publicar mais do que qualquer outro país sobre o dia 12 de outubro de 1492
(Markey, 2016: 8).
Nesse momento, a formação da identidade europeia se utiliza das experiências regionais e
contextuais para definir a experiência da humanidade, num sentido totalizante da História
humana, englobando a América (Müller; Ferreira, 2018: 3). As produções italianas, como as
do próprio Stradanus, Vasari ou as de Cesare Ripa (1560-1622), contribuem para isso de
forma extensa, recorrendo ao arsenal de características da sociedade italiana e europeia, de
forma geral, para determinar a experiência histórica do mundo. Cesare Ripa, em seu livro
―iconologia‖, publicado em 1593, atribui representações visuais de itens consagrados à
cultura ocidental como a imprensa, a Arte, a música, etc. e os descreve, formando um
dicionário simbólico. No caso da imprensa, a sua descrição é a seguinte:
―Uma mulher com uma roupa branca, [...] com as letras do alfabeto;
segura uma trombeta em uma mão, redonda, que está inscrito
UBIQUE e, no outro, o Sempervive [...] com as impressões impressas
por ela, com alguns implementos. O branco mostra que a impressão
deve ser pura e correta. Chequer'd, para significar as caixinhas para as
letras. UBIQUE significa ser famoso em qualquer lugar.‖
Ripa, 2009: 70, tradução nossa.
A descrição aponta para uma universalização do uso da imprensa, principalmente pela
utilização da palavra ―ubíquo‖ na forma latina, que significa ―estar presente em todos os
lugares‖, ou melhor, ―onipresença‖. Ainda que os autores italianos buscassem engradecer a
sua própria participação na formação da Modernidade, eles se alinhavam no discurso
ocidental de que toda a humanidade devia seu progresso à Europa. A própria palavra
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―Europa‖ passa a ser utilizada cada vez mais a partir do aumento da produção de mapas,
demarcando o continente como uma unidade (Hale, Apud Höfele, 2005: 8). Segundo o
pressuposto de que a experiência europeia se torna a base para a experiência do Orbe, os
ocidentais passaram a estabelecer critérios de separação entre as sociedades a partir daquilo
que possuíam do mundo ocidental ou não, assim como fez Pero Magalhães de Gandavo
(1540-1579) no seu conhecido ―Tratado da Terra do Brasil‖:
―A língua deste gentio toda pela costa é uma: carece de três letras
scilicet, não se acha nela F, nem L, nem R, cousa digna de espanto,
porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem
sem Justiça e desordenadamente.‖
Gandavo, 2008: 66.
Essa formação de identidade, contudo, não pôde existir sem a criação dos limites do que era o
Ocidente e daquilo que era considerado como ―Outro‖, não-ocidental. Para os europeus, a
presença dos ocidentais na expansão dos limites do mundo ―até então conhecido‖ se torna a
base seminal para a concepção do que é o Ocidente. Aquilo no qual os europeus não tivessem
colocado as mãos era considerado desconhecido, mas passaria a ser ―parte do mundo‖, caso
fosse dominado pelos ocidentais. Carlos V (1500-1558), rei da Espanha e Imperador do Sacro
Império Romano, ao adotar o lema de sua casa como Plus Ultra
2
, se colocou como o
imperador que superaria os feitos do mitológico herói grego Hércules, ao ―descobrir‖ que
haviam terras além do mar da costa ibérica e que essas terras seriam dominadas pelo
―imperador cristão‖ (Höfele, 2005: 6).
A família Médici comitente de Stradanus -, cujo governo na região da Toscana dependia do
apoio de Carlos V, compartilhava da perspectiva do imperador. Giovanni Albicanti produziu,
a pedido de Cosmo de Médici, para o casamento do Grão-duque com Eleonora em 1541, uma
imagem de Carlos V, acima de um arco do triunfo, vestido como um imperador romano,
matando três indígenas. Essa imagem vinha acompanhada de um texto poético que dizia:
―Nossa Era será mais rica e perfeita / Com o Novo Mundo descoberto e dominado‖
(Albicanti, Apud Markey, 2016: 20, tradução nossa). Nesse sentido, ainda que os europeus
tivessem suas diferenças e travassem constantes guerras entre si, compartilhavam do
pensamento de totalização da experiência histórica da humanidade baseada na expansão dos
ocidentais pelo Orbis Terrarum, na medida em que buscavam demarcar uma Era a partir de
seus feitos, ignorando ou ocultando as sociedades outras, como bem apontado pelos estudos
do grupo Modernidade/Colonialidade.
Destarte, para nos debruçarmos sobre essa temática devemos avançar com um pouco mais de
atenção. Por isso, debateremos ao longo desse artigo um aspecto seminal da formação da
identidade europeia e da consequente Modernidade: a concepção da Natureza. A partir das
gravuras de Johannes Stradanus, dividiremos nossa análise em três etapas: a) A concepção da
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“Vá além”, do latim.
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Natureza no Ocidente e as contribuições de Johannes Stradanus; b) O avanço tecno-científico
como base para a formação da Modernidade e; c) Breves considerações sobre as gravuras de
Stradanus pela ótica da Interculturalidade Crítica.
A concepção da Natureza no Ocidente e as contribuições de Johannes Stradanus
Apesar de os italianos se considerarem como portadores do Renascimento contexto
histórico que os consagraria à Modernidade , Ernst Cassirer afirma que houve, até mesmo
entre os próprios europeus, uma necessidade de ―alinhamento‖ acerca do que era a Natureza
para o Ocidente, visto que sua concepção tem parte central na formação da Modernidade. Até
as produções de Nicolau de Cusa (1401-1464), teólogo alemão que viveu por muito tempo na
Itália, a perspectiva sobre o mundo e a Natureza estava mais próxima daquela vista no Gênese
do que no pensamento Moderno que viria a se estruturar no século XVI, mas apresentava
mudanças em relação ao pensamento medieval (Cassirer, 2001: 79)
No Gênese, a Natureza era uma criação de Deus, feita para ser entregue ao Homem. Tudo que
fora criado deveria ser subjugado em favor da vivência da Criatura:
“E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa
semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos
céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo réptil que se
move sobre a terra. E criou Deus o homem à sua imagem, à imagem
de Deus o criou, macho e a fêmea os criou. E Deus os abençoou, e
Deus lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e
sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus,
e sobre todo animal que se move sobre a terra.
A Bíbilia, GÊNESIS 1:2629, 2015.
Nesse sentido, a Natureza era algo a ser utilizado, mas não criado pela humanidade. O
pensamento de Nicolau de Cusa, num sentido ligeiramente diverso, era de que a Natureza
emanava a perfeição divina e os humanos, com seus sentidos, deveriam compreender cada vez
mais o mundo afim de conhecer a totalidade da criação de Deus (Cassirer, 2001: 79). Giorgio
Vasari, ulterior, no entanto, ao valorizar a Arte e os artistas de seu tempo, diz em seu livro
―Vida dos mais eminentes pintores, escultores e arquitetos‖, publicado pela primeira vez em
1550:
―A arte deve sua origem à própria Natureza [...] esta bela criação, o
mundo, forneceu o primeiro modelo, enquanto o mestre original foi
aquela inteligência divina que não apenas nos tornou superiores aos
outros animais, mas como o próprio Deus, se me atrevo a dizer isto.‖
Vasari, 2009: 43, tradução nossa.
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A Arte renascentista que, para Vasari, deveria ser baseada no realismo, se torna uma das
capacidades que a humanidade teria a seu dispor de alcançar os feitos divinos, recriando a
Natureza assim como Deus o fizera uma vez na criação do mundo. Existe, portanto, uma
alteração na concepção da Natureza baseada no avanço tecno-científico do século XVI, na
medida em que, nesse momento, o mundo não seria mais somente inspiração, mas recriação.
A invenção da pintura a base de óleo - por exemplo - creditada pelos ocidentais a Jan Van
Eyck (1390-1441), pintor de origem belga, teria sido um dos principais avanços técnicos
responsáveis por permitir às mãos humanas a possibilidade de recriação da Natureza, já que as
tintas feitas com base no azeite demoravam mais a secar em relação a tinta feita a base de
clara de ovo, propiciando aos artistas mais tempo de pintura e maior sobreposição de tons
para imitar a realidade. O próprio Stradanus escreveu, em uma de suas gravuras, que a tinta a
base de óleo era uma conveniência aos artistas, pois melhorava seus trabalhos e era uma
grandiosa invenção (Stradanus, em Nova Reperta, ca. 1585)
Albrecht Dürer, conhecido pintor e gravurista alemão (1471-1528) compartilhava dessa
perspectiva quando disse que ―Muitos artistas pintam figuras de si mesmos e os grandes
artistas têm o poder de criação como o de Deus. Pois um bom pintor está internamente cheio
de figuras‖ (Dürer, Apud Hall, 2014: 112). Um artista valorizado, nesse momento, era aquele
que tinha grande inventividade, ou seja, criava figuras e imagens a partir de seus
pensamentos. Mesmo Vasari elogia Stradanus seu aprendiz - nesse sentido ao dizer que
―Giovanni della Strada, um flamengo, que [tem] bom desenho, a melhor fantasia, muita
invenção e uma boa maneira de colorir‖ (Vasari, 2009: 18, tradução nossa). A invenção,
portanto, era a capacidade de recriar a Natureza sem depender de pensamentos alheios,
responsabilizando apenas o artista por sua obra, numa característica quase divina.
Num sentido semelhante, mas em relação a outro avanço tecno-científico, Johannes Stradanus
descreve, em uma de suas gravuras, o uso da lvora - artefato de criação humana - como
―Trovão e relâmpago feitos pelas mãos‖, atribuindo à humanidade uma característica que
apenas Deus havia sido capaz de criar: o poder de um raio. Pelo barulho que produziam e a
destruição da qual eram capazes, os canhões que utilizavam pólvora eram constantemente
associados aos relâmpagos no imaginário europeu. O conhecido poeta italiano Francisco
Petrarca (1304-1374) afirmou: ―Não bastava que o céu trovejasse a ira de Deus imortal, era
necessário que o homúnculo [...] trovejasse também da terra: a loucura humana imitou o
inimitável raio‖ (Petrarca, Apud Frugoni, 2007: 124).
A Natureza, portanto, era ―imitável‖ na medida em que os seres humanos logravam forças
semelhantes ao poder divino, seja na (re)criação ou na destruição. Na gravura abaixo, que é a
de número 3 da série Nova Reperta, Stradanus representa, ao mesmo tempo, a criação da
pólvora, a produção de canhões e a utilização final, identificada, no canto superior direito da
imagem, pela destruição das paredes de um castelo pelas pesadas esferas de ferro. A Natureza,
nesse sentido, se aproxima cada vez mais do que Francis Bacon (1561-1626) chamaria, em
menos de trinta anos depois, de Novum Organum‖, feito para ser explorado, conhecido e que
permitia a repetição de um determinado evento a fim de se chegar à delimitação de um
experimento científico, totalmente controlado e organizado pelas mãos humanas (Quijano,
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Apud Mignolo, 2017: 4). A criação da pólvora, assim como a destruição possibilitada pelo seu
uso, são representadas como um constructo humano extremamente controlado, com divisão
de tarefas e formas de utilização que se buscam provar eficazes a partir da demonstração de
sua potencialidade final, isso é: o domínio sobre a Natureza.
Figura 1: Pulvis Pyrius. Nova Reperta. Johannes Stradanus, ca. 1585, gravura em papel.
Fonte: British Museum
Bacon, em seu livro Novum Organum‖, publicado no século XVII, parece buscar uma
espécie de batalha com a Natureza afim de vencê-la e descobrir ―seus segredos‖ (Bacon,
2000: 3). O filósofo britânico propunha a criação de um ―novo método‖, que fosse
suficientemente capaz de fazer com que os conhecimentos sobre o mundo não se
estabelecessem, mas que eles avançassem sobre o ―desconhecido‖:
“Mas aqueles dentre os mortais, mais animados e interessados, não
no uso presente das descobertas feitas, mas em ir mais além; que
estejam preocupados, não com a vitória sobre os adversários por
meio de argumentos, mas na vitória sobre a natureza, pela ação; não
em emitir opiniões elegantes e prováveis, mas em conhecer a verdade
de forma clara e manifesta.”
Bacon, 2000: 6.
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Bacon se propõe a vencer a Natureza, por mais que a considere como superior e mais
complexa que os sentidos humanos. Os sentidos, para o autor, são influenciados pela vontade
humana, que tende a determinar como ―verdade‖ aquilo que se prefere de forma irracional.
Somente com um método, portanto, seria possível utilizarmos nossos sentidos para avançar
perante as forças ocultas da Natureza sem interferências da vontade. Essa concepção dialoga
com a de Johannes Stradanus que, por sua vez, considera que a Natureza pode ser
considerada como vencida quando obedece ao ser humano, por meio da ciência e da
tecnologia. O intelecto humano desvenda, com seus instrumentos, aquilo que a Natureza
parece esconder propositalmente. Isso pode ser percebido pela forma como é descrita a
invenção da bússola por Stradanus, na gravura de número 2 da série Nova Reperta: ―Aquela
pedra relevou a Flávio o seu segredo de amor pelo polo, mas ele revelou isso para o
navegador‖ (Stradanus em Nova Reperta, ca. 1585).
A pedra ímã teria revelado um segredo para Flávio Amalfitanus, o suposto inventor da
bússola. O magnetismo terrestre que faz com que a agulha aponte para o polo é transformado
numa ―confissão amorosa‖, como numa relação de dominação de um ator ativo - o homem
cientista - sobre um passivo a Natureza. Além da revelação de seu ―amor secreto‖, o homem
cientista compartilhou essa descoberta com o navegador, facilitando a expansão humana pelo
Orbe.
Figura 2: Lapis Polaris Magnes. Nova Reperta. Johannes Stradanus, ca. 1585, gravura em
papel
Fonte: British Museum
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Na representação visual de Stradanus, Flávio Amalfitanus observa a Natureza pelos
instrumentos e não pela Natureza em si. Há, na gravura acima, apenas elementos que apontam
a presença da Natureza - como a janela ao fundo que mostra embarcações no mar -, mas a sua
interpretação acontece dentro de uma sala, com livros e compassos, além de um globo e rosas
dos ventos. O ambiente é organizado como um escritório e o conhecimento é obtido de forma
silenciosa e solitária. Os ―louros da descoberta‖, por assim dizer, são todos de uma pessoa
apenas, pois não há, para Stradanus, divisão dos méritos nessa empreitada. A Natureza, para
Stradanus, é, portanto, aquilo que é passível de domínio, criação, recriação e destruição a
partir do conhecimento de seus ―segredos‖. A relação humano/Natureza se alinha à relação
Deus/mundo contida no livro do Gênese, alternando os termos e colocando a humanidade
como soberana perante a Natureza, não da forma como Deus havia determinado, mas
alcançando a própria posição divina.
O avanço tecno-científico como base para a formação da Modernidade
O avanço tecno-científico do século XVI fora pensado pelos ocidentais como uma empreitada
jamais vista na História da humanidade. Johannes Stradanus compila dezenove invenções ―de
seu tempo‖ numa série de gravuras que apresenta as novas técnicas e invenções que
facilitavam a melhoravam a vida dos seres humanos. O que Stradanus esconde,
propositalmente ou não, é que várias das invenções colocadas por ele na Nova Reperta são de
tempos e localidades diferentes. Os óculos, por exemplo, são invenções que eram
comercializadas de forma ordinária em Veneza por volta do ano 1285, quando os vendedores
de óculos passavam de porta em porta vendendo o produto capaz de ―salvar‖ a visão dos
idosos (Frugoni, 2007: 7). A pólvora teria sido utilizada no Oriente séculos e teria sido
adaptada no Ocidente especialmente na Alemanha - no culo XIII, mantendo uma
distância de quase três séculos da publicação das gravuras de Stradanus. A colocação das
invenções num só tempo, por Stradanus, revela a busca pela ―sincronização do tempo‖ já vista
no Ocidente ao longo do século XVI e que se manterá como necessidade até o século XIX
com a formação do Meridiano de Greenwich, que alinhou o tempo do mundo todo num
horário (Jordheim, 2014: 503).
Isso nos indica, portanto, que o gravurista belga considerou os avanços científicos como
formadores de um novo tempo, principalmente aqueles que consagraram aos humanos a
possibilidade de controle da Natureza, seja na correção dos males naturais da visão humana
no caso dos óculos -, seja na possibilidade de criar raios com as próprias mãos‖ - no uso da
pólvora.
Na gravura que representa a invenção, ou ―descoberta‖ da Longitude, Johannes Stradanus
afirma que ―Por meio do ímã, que sempre desvia um pouco para os lados, Plancius fez com
que fosse possível encontrar portos em qualquer lugar‖ (Stradanus em Nova Reperta, ca.
1585). Isso pressupõe que o conhecimento ocidental fora capaz de alterar uma difícil
realidade dos navegantes antes da descoberta do ímã: a falta de orientação em mar aberto.
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Saber onde se está é imprescindível em qualquer viagem, mas principalmente naquelas que se
direcionam rumo ao ―desconhecido‖, como era o caso da viagem à América para os
ocidentais. A orientação nos oceanos teria sido responsável pela ―descoberta‖ da América,
visto que mesmo em uma outra série de gravuras, a Americae Retectio, publicada por volta de
1588, Stradanus retrata a glória dos navegantes que chegaram ao continente americano como
antecedente aos feitos, numa espécie de projeção da grandeza dos eventos que seriam,
futuramente, protagonizados por Colombo e Vespúcio (Vespucci, 2021: 134)
Nesse sentido, a série de gravuras de Stradanus valoriza, ao mesmo tempo, os próprios
avanços tecnológicos, assim como as conquistas alcançadas pela utilização desses
instrumentos. Na gravura da América (figura 3), que é a primeira imagem da série após o
frontispício, o navegante Américo Vespúcio encara uma indígena sentada numa rede e segura,
em uma de suas mãos, um astrolábio instrumento técnico que permite a localização a partir
da posição dos astros e possui uma gravura específica para si na série de gravuras -, e na outra
mão, um estandarte com um crucifixo, ambos símbolos do Ocidente (Tatsch, 2011: 171).
Essa associação entre a imagem do europeu que carrega os símbolos dos avanços científicos
existe quando colocada em contraposição ao símbolo do que era considerado selvagem,
afinal, não existe o civilizado se não o ―incivilizado‖. Nessa gravura, a indígena é
representada nua, com apenas um cocar e uma tanga ambos feitos de penas -, deitada numa
rede e acompanhada de animais, um remo encostado em uma árvore, além de uma cena de
canibalismo ao fundo, na qual três indígenas assam uma perna numa fogueira. Vespúcio
encara a indígena como se estivesse destinado a dominá-la, que a mulher parece ter
acordado de um longo sono e logo se inclina na direção de um desconhecido navegador. A
inscrição abaixo da imagem diz que ―Américo descobre a América. Desde então estará
sempre desperta‖, indicando que o sono da América de até então seria encerrado pelo contato
com o Ocidente (Schreffler, 2005: 301).
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Figura 3: América. Nova Reperta ca. 1585, Johannes Stradanus. Gravura em papel.
Fonte: British Museum.
Vespúcio é acompanhado por navios no canto esquerdo da imagem e veste uma armadura por
baixo de seu manto. As brilhantes e polidas armaduras também possuem uma gravura
dedicada na série de Stradanus, por mais que existissem milênios. A questão é que
Stradanus valoriza, nessa gravura em questão, o polimento de armaduras e não a utilização
delas por si só, quando diz que ―Espadas, machados, todas as armas de guerra são polidas no
nosso tempo, não na Antiguidade‖, determinando a superioridade de seu tempo perante os
tempos passados (Vespucci, 2021: 102).
Se considerarmos que a formação da Modernidade não seria possível sem a invenção da
América, como nos apontou Castro-Gómez (Gómez, 2005: 46), essa gravura representa a
busca pela participação italiana na conquista da América assim como o pontapé inicial de um
novo tempo a Modernidade -, marcado pela capacidade do ser humano em alcançar grandes
feitos pelo auxílio e utilização dos instrumentos científicos. Como diz o estudioso latino
americano Walter Mignolo: ―A América não era uma entidade existente para ser descoberta.
Foi inventada, mapeada, apropriada e explorada sob a bandeira da missão cristã‖ (Mignolo,
2017: 4). A invenção da América, para Stradanus, é consequência do conhecimento da
Natureza, que muitos dos seus ―segredos‖, como o continente ―desconhecido‖ foram
revelados em seu tempo com o auxílio dos instrumentos criados pelos humanos.
Um pensador italiano, chamado Girolamo Cardano (1550-1600), em sua obra De vitta
própria Liber‖, publicada apenas em 1663, décadas após a sua morte, aponta que seu tempo
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era uma espécie de pináculo da humanidade, principalmente devido ao alcance das
capacidades divinas:
“Em meio a prodígios naturais, o mais importante e mais raro é que
eu nasci nesse século, no qual toda a Terra foi feita conhecida,
enquanto os Antigos mal conheciam um terço dela [...] o que é mais
incrível é que a artilharia, o tiro de raio dos mortais, é muito mais
perigoso do que o dos deuses. Nem eu omitirei o grande compasso,
que guia pelos vastos oceanos do exterior e das regiões
desconhecidas. Deixe-me finalizar e adicionar a invenção da
imprensa, feita por mãos humanas e inventada pela ingenuidade
humana, que faz milagres divinos”.
Cardamo, 1930: 34-35, tradução nossa.
O conhecimento da Terra e da Natureza, nesse aspecto, é base fundamental para o
estabelecimento de critérios de superioridade de uma Era por outra, ou de uma sociedade, por
outras.
Para estabelecer o que era a Natureza, também foram de fundamental importância os escritos
de Francisco Vitória (1483-1546), teólogo espanhol responsável pela escrita do livro
Relectiones: sobre os índios e sobre poder civil‖, publicado na década de 1530. Em seus
escritos, Vitória diz que: ―Da mesma forma, Deus e a Natureza não faltam nas coisas
necessárias à grande parte da espécie‖ (Vitória, 2016: 116). Destarte, a função da Natureza era
garantir o necessário à sobrevivência da nossa espécie, assim como Deus garantia a existência
do mundo e da humanidade. ―Descobrir‖ as leis da Natureza, se torna, portanto, descobrir as
leis divinas, como o próprio Vitória, em outra passagem de seu livro, diz:
“Além disso, o que eles chamam “professar a lei natural”? Se é
conhecê-la, não a conhecem toda; se é querer observar a lei da
natureza, então, por outro lado, também querem observar toda a lei
divina. Com efeito, se soubessem que a lei cristã é divina, desejariam
observá-la”.
Vitória, 2016: 141.
O ―Novum organum é formado, portanto, pela capacidade humana em se assemelhar a Deus,
primeiro conhecendo os ―segredos‖ da Natureza e, posteriormente, recriando a Natureza a
partir dos instrumentos tecno-científicos, que moldam o mundo a partir do que deseja o ser
humano ocidental.
Breves considerações sobre as gravuras de Stradanus pela ótica da Interculturalidade
Crítica
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Se buscamos observar as gravuras de Stradanus pela ótica da Interculturalidade Crítica
devemos, de antemão, definir o que ela é e como entendemos a sua importância para o avanço
dos estudos que relacionem a Natureza e a humanidade. Como apontou Elias Nazareno:
“A interculturalidade crítica, entendida como processo social,
político e epistêmico, pode ser considerada, portanto, como sinônimo
da decolonialidade, pois, mesmo tendo em conta as relações
assimétricas estabelecidas pelo colonizador em termos políticos,
sociais e epistêmicos, não como negar a influência recíproca
exercida por parte daqueles que foram historicamente
subalternizados. Nesse sentido, a decolonialidade instala-se no
mesmo momento em que se instala a colonialidade do poder. Os
povos indígenas que permanecem vivos, com seus conhecimentos e
suas línguas, são uma prova viva da decolonialidade como processo
de resistência e afirmação identitária”.
Nazareno, 2017: 46.
Dessa forma, a Interculturalidade Crítica é a busca pela diversidade epistêmica, caminhando
no sentido contrário ao imposto pela Colonialidade do Poder, cuja estrutura de dominação
estava imersa na Matriz Colonial de Poder da qual nos falou Walter Mignolo (Mignolo, 2017:
6). A Matriz Colonial de Poder é a organização da economia, da autoridade, da epistemologia,
do gênero e da sexualidade pelo colonizador europeu ao se apoderar da América ao longo do
século XVI e que ainda hoje, não se encerrou. A colonialidade é, portanto, toda a junção entre
os modus operandi, vivendi e pensandi do colonizador, que fora implementada nos territórios
colonizados (Baniwa, 2019: 59).
Nessa implementação, não somente os povos nativos da América foram afetados, mas
também os próprios europeus de formas diferentes na medida em que os conhecimentos
dos ocidentais eram constantemente contrastados com os conhecimentos indígenas, na busca
pela sobreposição daquele por este. O processo de concepção do que era a Natureza ao longo
do século XVI, como dito, cumpre papel fundamental na Matriz Colonial de Poder, visto
que ela daria as bases filosóficas e morais para a exploração dos territórios encontrados pelos
colonizadores sem considerar as vivências tradicionais anteriores.
A interpretação da Natureza se baseou, durante a colonização, na separação entre Natureza e
humanidade, pois a partir dessa cisão era possível utilizá-la como algo externo à própria
humanidade, numa relação que considerou o humano como superior à Natureza ao utilizar-se
de instrumentos de conhecimento e controle. Johannes Stradanus contribuiu para a formação
dessa perspectiva ao glorificar as invenções supostamente modernas que garantiam a
expansão pelo Orbe e o consequente domínio daquilo que fosse ligado à Natureza, como os
próprios ameríndios, pensados quase sempre como parte intrínseca do cerio tropical.
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A perspectiva indígena sobre a Natureza não aparta o ser daquele lugar aonde vive. David
Kopenawa disse em seu livro ―A queda do céu: palavras de um xamã Yanomami‖ que: ―No
primeiro tempo, os brancos estavam muito longe de nós. Ainda não tinham trazido o sarampo,
a tosse e a malária para nossa floresta. Nossos ancestrais não adoeciam tanto quanto nós, hoje
(Kopenawa, 2015: 224). Nesse trecho, podemos perceber a associação do ―nós‖ com a
floresta, pois o descontentamento de Kopenawa em relação ao sarampo, a tosse e a malária se
na contaminação da ―nossa floresta‖ e, consequentemente, da comunidade, não havendo,
portanto, separação entre os corpos indígenas e o local onde vivem.
Mesmo que David Kopenawa esteja vivo em nosso século o que pareceria um anacronismo
ao historiador do século XIX -, sua perspectiva remonta ao pensamento passado entre as
gerações indígenas culos e que permanece vivo nos dias atuais, com efeito do tempo,
claro. Como apontou Federico Navarrete, a tradição oral ameríndia deve ser compreendida
como uma documentação histórica, pois, muitas vezes, as organizações sociais indígenas
estão baseadas na oralidade, perpassada por critérios de verificação e valorização dentro da
sociedade. A Colonialidade atribuiu às narrativas indígenas ao campo daquilo que é
considerado como mitológico, afastando-as do campo do logos, do pensamento racional.
Nesse sentido, isso é, antes de tudo, uma forma de desvalorização das tradições indígenas
baseada no pensamento ocidental que associa tudo aquilo que se mistura com a Natureza
como primitivo, inferior, pois a Natureza é tratada pela perspectiva da dominação, não da
coexistência e do Bem Viver (Navarette, 1999: 232).
A Modernidade/Colonialidade buscou separar cada vez mais a Natureza do ser humano, pois
uma aproximação entre estas duas categorias seria, para o pensamento ocidental, o
rebaixamento de uma pela outra, que mesmo a própria História fora pensada como
progresso linear, atribuindo a evolução humana ao seu afastamento e controle da Natureza.
Johannes Stradanus, nesse sentido, coloca seu tempo como o superior até mesmo em relação
aos Antigos de Grécia e Roma muito valorizados no Renascimento -, justamente porque os
Antigos, apesar de terem tentado se desvencilhar da Natureza, não possuíam os instrumentos
para dominá-la como os Modernos chegaram a obter.
“[...] la crisis actual es causada por un modelo particular de mundo
(una ontología), la civilización moderna capitalista de la separación y
la desconexión, donde humanos y no humanos, mente y cuerpo,
individuo y comunidad, razón y emoción, etc. se ven como entidades
separadas y autoconstituidas
Escobar, 2017: 68.
Pablo Alarcón Cháires aponta que o projeto de desenvolvimento baseado apenas no progresso
possui uma característica que é tanto sua base, como também sua aplicação, que o:
―proyecto de modernidad responde a su intolerancia hacia toda forma premoderna, la cual es
calificada de arcaica, obsoleta, primitiva e inútil, que la desprovee de conciencia de especie y
de conciencia histórica‖ (Alarcon-Cháires, 2019: 19). Dessa forma, para além da separação
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entre Natureza e ser humano, a Modernidade busca separar também aquelas sociedades cujas
organizações se conectam com a Natureza, conotando-as de sociedades selvagens e atrasadas.
Johannes Stradanus coloca, em sua gravura sobre a América (figura 3), a oposição entre o
mundo ocidental, cristão, científico, racional, masculino e o mundo selvagem, canibal, nu,
irracional, feminino, de forma que essa oposição, em verdade, é a busca pela separação
daqueles que alcançaram o poder divino e aqueles que apenas vivem das criações divinas.
Para Stradanus, o conhecimento, cuja a grandeza e a consequência seria possível definir pelo
grau de instrumentalização da Natureza, se produz de forma solitária em praticamente todas
as gravuras da Nova Reperta. É possível notar uma perspectiva de criação de conhecimento
diversa daquela que têm os povos originários da América, que buscam o conhecimento pela
prática coletiva, como diz o estudioso Alexandre Herbetta (Herbetta, 2019: 8). Entretanto,
essa separação entre conhecimento indígena e ocidental é, em grande parte, uma invenção do
colonizador, pois:
“Uma vez superada a arrogância, a prepotência e o autoritarismo da
ciência ocidental, sem dúvida os pontos de convergência entre os
conhecimentos tradicionais e científicos são de verificação simples.
Em primeiro lugar, as sociedades humanas, incluindo as sociedades
indígenas, concebem o campo de alcance do conhecimento ao mesmo
tempo limitado e ilimitado. Ilimitado, porque está em permanente
processo de construção, desconstruções, (re)construções,
descobertas, invenções, interpretações e crenças dinâmicas. Limitado,
porque não consegue explicar e responder a todas as perguntas
humanas. Em segundo lugar, em todas as sociedades humanas,
incluindo as sociedades indígenas, os conhecimentos são construções
humanas, ou seja, resultados de observações, experimentações (erros
e acertos) e vivências de longo prazo. Então, perguntamos: o que
diferencia o conhecimento científico de outros conhecimentos, para
além do poderio bélico do guardião ocidental da ciência?”
Baniwa, 2019: 70.
A diferenciação que notamos em Stradanus é que o conhecimento dito científico serve a
propósitos diferentes dos conhecimentos ameríndios, a saber: um é instrumento de dominação
da Natureza e busca pela semelhança com os poderes divinos do cristianismo, enquanto o
outro busca ―O Bem Viver, como um estado de espírito no mundo cósmico mais do que uma
qualidade material ou social de vida está relacionado às relações equilibradas dos sujeitos
humanos e não humanos que coabitam o cosmo‖ (Idem, 2019, p. 64). Isso não significa dizer
que os conhecimentos ocidentais não propiciaram facilidades e melhorias na qualidade de
vida dos sujeitos que deles se apoderaram, mas que esses conhecimentos não foram pensados
para serem compartilhados em igualdade entre todos os humanos e a Natureza, pois mesmo
em sua gênese está a marca da individualidade e a separação sujeito/objeto, ou
Humano/Natureza.
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Considerações finais
À guisa de considerações finais, pudemos avaliar, a partir da análise das gravuras da Nova
Reperta de Stradanus que a Natureza é vista como um local a ser dominado pelo
conhecimento tecno-científico, enquanto que, no sentido oposto, os saberes outros da
Decolonialidade apontam os conhecimentos como formas para buscarmos o Bem Viver, que é
a vida em sociedade e harmonia com a Natureza, sem a necessidade de sermos superiores a
ela, pois não somos seus criadores.
Johannes Stradanus, em seu tempo, produziu gravuras que atendessem aos pedidos da Família
Médici, elaborando um arcabouço visual de valorização da Modernidade na busca pelo
engrandecimento do ser humano que atingia os poderes de Deus no nese, pois alterava,
controlava e recriava a Natureza com suas próprias mãos. Nesse processo de valorização da
humanidade não toda ela -, aqueles seres que não correspondessem ao que era visto como
racional segundo os parâmetros da sociedade cristã ocidental, eram considerados como
imagens estáticas de um passado superado pelos europeus. Os ocidentais buscaram se
representar como imagem e semelhança de Deus, inspirando-se na narrativa judaico-cristã,
para, não do barro, mas dos instrumentos técnicos, moldarem a Natureza - principalmente a
América e seus habitantes - segundo seus desejos sem considerar, portanto, os conhecimentos
outros e as possibilidades de conciliação na busca por uma sociedade menos hierárquica e
mais diversa.
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Augusto Godinho Vespucci
Doutorando em História pela Universidade Federal de Goias (PPGH-UFG). Mestre em
História pela Universidade Federal de Goiás (2019-2021). Graduado em História-Licenciatura
também pela Universidade Federal de Goiás (2015 - 2018). Tem experiência na área de
História, com ênfase em História da América e História das Mulheres. Pesquisou em obras de
Arte e em documentos manuscritos a participação das mulheres na cultura política e vida
social no México colonial dos séculos XVI, XVII e XVIII. Atualmente estuda as obras
renascentistas que representam o Novo Mundo e a Modernidade, no século XVI. O foco de
sua pesquisa de mestrado é a produção de gravuras no século XVI, do autor Johannes
Stradanus, na Itália. Em seu doutorado, sua pesquisa se foca na temporalidade das gravuras de
Johannes Stradanus.