Mônica Brincalepe Campo
CIDADES MURADAS
POR LUCRECIA MARTEL E POR KLEBER MENDONÇA FILHO, A DISCUSSÃO SOBRE AS
RESTRIÇÕES AO ESPAÇO PÚBLICO E À CIDADANIA
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CIDADES MURADAS
POR LUCRECIA MARTEL E POR KLEBER MENDONÇA FILHO, A DISCUSSÃO
SOBRE AS RESTRIÇÕES AO ESPAÇO PÚBLICO E À CIDADANIA
WALLED CITIES
BY LUCRECIA MARTEL AND KLEBER MENDONÇA FILHO, THE DISCUSSION
ON
RESTRICTIONS TO PUBLIC SPACES AND CITIZENSHIP
CIUDADES AMURALLADAS
DE LUCRECIA MARTEL Y KLEBER MENDONÇA FILHO, LA DISCUSIÓN
SOBRE LAS RESTRICCIONES AL ESPACIO PÚBLICO Y LA CIUDADANÍA
Mônica Brincalepe Campo
mbcampo@ufu.br
Universidade Federal de Uberlândia
Resumo
Os filmes de Lucrecia Martel, La ciudad que huye (2006) e de Kleber Mendonça Filho, Retratos
Fantasmas (2023) estão abordados neste artigo a partir da ideia de expressões simbólicas das
subjetividades. Utilizo o termo expressões para me referir às linguagens artísticas no campo da
história, pois a estas não se restringem à ideia de representarem o real, mas de estarem
amplamente envolvidas em sua fatura. Com fundamento no campo das culturas visuais, sigo
com a proposta de Nicholas Mirzoeff sobre o direito de olhar e de buscar a contravisualidade
(countervisuality) como conceito central de análise, e procuro refletir sobre a compreensão do
lugar das linguagens artísticas para a produção histórica. Em Mirzoeff se origina a reivindicação
sobre a possibilidade da capacidade de ver, de confrontar os controles e restrições colocados
por uma visualidade da colonialidade do poder, em referência a Walter Mignolo, e a partir de
uma análise decolonial das linguagens artísticas. Este processo de reflexões está aqui
arregimentado, a fim de contribuir para a prática educacional, podendo ser conduzido como
intermediário em um processo de ação educativa.
Palavras-Chave: Linguagens artísticas; Contravisualidades; Decolonialidade; Expressões
artísticas.
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Abstract
The films La ciudad que huye (2006), by Lucrecia Martel, and Retratos Fantasmas (2023), by
Kleber Mendonça Filho, are approached in this article based on the idea of symbolic
expressions of subjectivities. I use the term expressions to refer to artistic languages in the field
of history as these are not restricted to the idea of representing reality but are largely involved
in its creation. From the field of visual cultures, I seek to reflect on the understanding of the
place of artistic languages in historical production following Nicholas Mirzoeff’s proposal on
the right to look and to seek countervisuality as a central concept of analysis. Based on a
decolonial analysis of artistic languages, the claim about the possibility of the ability to see, to
confront the controls and restrictions placed by a visuality of the coloniality of power, originates
in Mirzoeff in reference to Walter Mignolo. This process of reflection is organized here in order
to contribute to educational practice and can be conducted as an intermediary in a process of
educational action.
Keywords: Artistic languages; Countervisualities; Decoloniality; Artistic expressions.
Resumen
Las películas de Lucrecia Martel, La ciudad que huye (2006) y de Kleber Mendonça Filho,
Retratos Fantasmas (2023) son abordadas en este artículo a partir de la idea de expresiones
simbólicas de subjetividades. Utilizo el término expresiones para referirme a los lenguajes
artísticos en el ámbito de la historia, ya que estos no se restringen a la idea de representar la
realidad, sino que intervienen en gran medida en su elaboración. A partir del campo de las
culturas visuales, sigo la propuesta de Nicholas Mirzoeff sobre el derecho a mirar y buscar la
contravisualidad (countervisuality) como concepto central de análisis, y busco reflexionar
sobre la comprensión del lugar de los lenguajes artísticos en la producción histórica. Mirzoeff
origina la reivindicación sobre la posibilidad de la capacidad de ver, de enfrentar los controles
y restricciones impuestas por una visualidad de la colonialidad del poder, en referencia a Walter
Mignolo, y a partir de un análisis descolonial de los lenguajes artísticos. Este proceso de
reflexión se organiza aquí con el fin de contribuir a la práctica educativa, y puede realizarse
como intermediario en un proceso de acción educativa.
Palabras clave: Lenguagens artísticas; Contravisualidad; Decolonial; Expresiones artísticas
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Introdução
Desde os anos 1970, no Brasil e na Argentina, a urbanização estimulada no período ditatorial
modificou a ocupação das cidades. No choque desse processo, no qual os espaços de trânsito
comuns aos cidadãos foram crescentemente restringidos, é possível perceber a decadência do
espaço público e a debilitação da cidadania. Em diagnóstico primeiro, observam-se como
sintomas o acirramento das tensões dos grupos sociais e o aumento da desconfiança mútua na
população.
No Brasil, a grande migração campo-cidade acarretou a expansão da periferia nas cidades.
uma clara divisão de zonas urbanas: espaços de privilégio e atendimento de estruturas públicas
de saneamento, transporte e demais aparelhos urbanos e, simultaneamente, a periferia com
bairros dormitórios afastados e desprovidos de estrutura pública. Na Argentina, a malha
rodoviária, iniciada durante a ditadura, foi ampliada desde os anos 1990 com as políticas
neoliberais do governo de Carlos Menem, concomitante ao sucateamento da malha ferroviária
pública nacional. Por essas novas rodovias, ocorreu a proliferação dos countries, espaços
privados residenciais. Tais processos provocaram o esvaziamento da cidade vanguardista na
Argentina e do viver projetado em convívio público do início do século XX. No Brasil, o efeito
foi a piora da qualidade da vida urbana e o aumento da violência no campo. Pode-se afirmar
que, em comum, ocorreu um processo crescente de suburbanização, aos moldes do modelo
norte-americano, a partir do qual as cidades, os espaços urbanos idealizados nos modelos
europeus de convívio público e afirmação da cidadania, foram progressivamente abandonados.
Os filmes de Lucrecia Martel e Kleber Mendonça Filho contribuem para a reflexão sobre a
elaboração das expressões simbólicas, desenvolvidas nas subjetividades de nossas sociedades.
Neste artigo, apresento um recorte sobre a expressão artística contemporânea em sua intrínseca
relação histórica com nossas experiências em sociedade, e proponho analisar dois
documentários dos cineastas, La ciudad que huye (2006)
1
e Retratos Fantasmas (2023)
2
.
Quando utilizo o termo expressões, estou elegendo a conceituação para a abordagem das obras
fílmicas, e na especificidade com a qual pretendo me referir às linguagens artísticas no campo
da história. Como afirma Suelen Simião (2024), citando de Dipaola,
[...] significa afirmar que a cinematografia realiza uma expressão da
experiência, não eliminando completamente qualquer vínculo com
representação, mas indo além, movendo-se a partir dos
1
LA ciudad que huye. Direção: Lucrecia Martel. Produção: Santiago Leiro, Vanina Berghella, Fabian
Beremblum. Roteiro: Lucrecia Martel. Argentina: Estudio Fantasma, 2006. (5 min), son. color.
2
RETRATOS Fantasmas. Direção: Kleber Mendonça Filho. Produção: Emilie Lesclaux. Roteiro: Kleber
Mendonça Filho. Brasil: CinemaScópio, 2023. (93 min.), son. color.
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entrecruzamentos possíveis de imagens com seus múltiplos sentidos em
transformação.
Dipaola apud Simião, 2024: 61.
As expressões fílmicas consideram que a linguagem artística ocupa um lugar de fundamental
compreensão da própria experiência histórica e sua (re)elaboração ativa com o passado, além
do envolvimento com o presente.
Para analisar a composição da linguagem desses documentários, proponho como ponto de
partida o campo das culturas visuais, com a proposta por Nicholas Mirzoeff sobre o direito a
olhar e à busca da contravisualidade (countervisuality). Tal elaboração analítica de Mirzoeff se
origina na reivindicação sobre a possibilidade da capacidade de ver, de confrontar os controles
e restrições colocadas por uma visualidade.
[...] o oposto do direito a olhar não a censura, mas a visualidade,
uma autoridade que supõe a reivindicação exclusiva da capacidade de
ver. Visualidade uma palavra antiga para um projeto antigo. Não
um vocábulo teórico da moda significando a totalidade de todas as
imagens e dispositivos visuais, mas na verdade um termo do início do
século XIX que faz referência visualização da história. Esta prática
deve ser imaginária, porque o que est sendo visualizado demasiado
substancial para que qualquer pessoa individual o veja, e criado a
partir de informações, imagens e ideias. Esta habilidade para compor
uma visualização manifesta a autoridade do visualizador.
Mirzoeff, 2016: 746.
Ao longo deste artigo, a análise sobre os documentários de Lucrecia Martel e Kleber Mendonça
Filho será aprofundada, explorando suas representações visuais e simbólicas como reflexos das
transformações urbanas e sociais nas sociedades contemporâneas do Brasil e da Argentina.
Partindo da teoria do direito a olhar de Nicholas Mirzoeff, será examinado o modo como esses
cineastas abordam a contravisualidade em suas obras, desafiando as narrativas dominantes e
promovendo uma reflexão crítica sobre a visualidade e a experiência humana. Além disso, a
importância das expressões artísticas como ferramentas para compreender e reinterpretar a
história e a sociedade serão destacadas, oferecendo novas perspectivas sobre os temas
abordados.
Os filmes como expressão histórica: La ciudad que huye e Retratos Fantasmas
Ser cidadão não tem a ver apenas com os direitos reconhecidos pelos
aparelhos estatais para os que nasceram em um território, mas também
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com as práticas sociais e culturais que dão sentido de pertencimento, e
fazem que se sintam diferentes os que possuem uma mesma língua,
formas semelhantes de organização e de satisfação das necessidades.
Canclini, 2006: 35.
Figura 1 Imagens de abertura do curta La ciudad que huye, 21”.
A população argentina, antes orgulhosa da ocupação e afazeres em seus espaços públicos de
convívio, tem migrado crescentemente para os countries, como se denominam os condomínios
fechados, em geral. A projeção realizada para estes novos espaços de habitação se com a
promessa de convívio entre pessoas iguais entenda-se, de mesma classe social em natureza,
de pouco ruído e, principalmente, de segurança. As cidadelas fortificadas combinam colégios
bilíngues, espaços esportivos e a garantia de um lugar idílico para as crianças crescerem livres
e os aposentados usufruírem dos prazeres do lazer.
A população brasileira, por outro lado, sofreu muito com a periferização explosiva em bairros
dormitórios desprovidos de toda a rede de assistência pública. Nos antigos bairros de camadas
médias e média-baixa, cresceram as ruas privatizadas porque fechadas à passagem pública
e a verticalização fortificada, inviabilizando a convivência e isolando seus moradores em seus
lares. Os muros, as cercas e as demais estruturas de segurança proliferaram. O antigo lar foi se
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tornando uma pequena fortaleza gradeada que restringe olhar e, ao mesmo tempo, apreende
seus moradores, na promessa de trazer-lhes proteção.
Para além desses fenômenos, bairros fechados com o estilo Alphaville
3
se expandiram
juntamente à malha rodoviária construída com financiamento público desde os anos 1990;
privatizada em momento posterior, mantém-se subsidiada pelo Estado e pela cobrança de taxas
em parques de pedágios.
Lucrecia Martel
Lucrecia Martel trouxe em seus longas-metragens os espaços fechados e restritos de lares,
baseando sua primeira cinematografia na região de Salta, na Argentina. Os filmes se passam
em residências ou lugares fechados e de convívio restrito entre seus personagens. O estilo da
cineasta se constrói em enquadramentos de cena restritivos, em ângulos e cortes significativos,
que costumam deixar o espectador com o incômodo de não conseguir dominar o ambiente ali
apresentado. A preocupação primeira da diretora sempre foi com o ruído, com o som (Barrenha,
2013: 20). A partir dessa construção sonora, a imagem é elaborada; ou seja, primeiro ela decide
o que quer transmitir com a sonoridade, para, posteriormente, eleger o lugar da câmera e definir
a imagem, provocando as sensibilidades dos espectadores no incômodo cênico. Como efeito
desta escolha de estética narrativa, está o tema do permanente isolamento de seus personagens
e da maneira como a incomunicabilidade está entranhada nestes grupos.
3
O Alphaville foi considerado um dos primeiros grandes empreendimentos privados de caráter de
exclusividade no Brasil, e teve por modelo os subúrbios norte-americanos. O primeiro foi realizado no
subúrbio de São Paulo, sendo agora um modelo e uma grife que se espraia pelo país.
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Figura 2 Tentativa de entrar em condomínio fechado. La ciudad que huye, 25”.
O curta-metragem, La ciudad que huye (2006) foi concebido como parte de uma mostra do
projeto La ciudad em ciernes
4
, evento itinerante cuja temática explora as cidades como espaços
de convívio e sua relação com o urbanismo e os direitos humanos. O projeto abrangeu doze
cidades ao redor do mundo, incluindo localidades na Europa, África e América. A orientação
de produção para o curta era que ele tivesse duração de 5 a 10 minutos e pensasse a urbanidade
sob a perspectiva dos direitos humanos e de seus cidadãos.
No pequeno documentário de Martel, assistimos à expansão dos countries por meio de
pesquisas em mapas, animações, fotos de geolocalização e filmagens aéreas. Também são
apresentadas imagens captadas em travelling, pela janela de um veículo em movimento,
passando por muros e cercas contínuas, logo se revelando como a parte externa de condomínios
fechados. A cineasta não adentra em nenhum dos condomínios. Por isso, a captação da cena é
construída de forma quase escondida, feita no enfrentamento das proibições do registro fílmico.
Em frente aos portões de condomínios, a equipe conversa com seguranças e síndicos que não
autorizam a entrada, mesmo quando informados de que se trata de um trabalho para a
universidade. De maneira repetida, entrevemos e escutamos mal os seguranças agindo para
conter a equipe, questionando se estão sendo filmados, devido à proibição. Essa abordagem
4
CÍRCULO DE BELLAS ARTES DE MADRID, La ciudad en ciernes, 2024. Disponível em:
<https://www.circulobellasartes.com/espectaculos/ciudad-ciernes-urbanismo-derechos-humanos/>.
Acesso em: 11 de fev. de 2024.
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cinematográfica, ou investigação fílmica, pode ser denominada como contravisualidade do
espaço privado, demonstrando uma atitude de guerrilha do registro imagético.
Figura 3 Imagem aérea da urbanização de Buenos Aires Grande com a quilometragem
percorrida. La ciudad que huye, 4’02’’.
A estrutura deste breve documentário se baseia no contraste elaborado por meio da divisão do
quadro de tela. De um lado, são apresentas imagens de muros dos condomínios fechados por
alguns instantes. Em seguida, a tela escurece e, no quadro ao lado, observamos o contracampo
das imagens, revelando o lado oposto à calçada do muro, formado pelo espaço urbanizado dos
vizinhos excluídos, que residem de maneira precarizada. O som incidental é modificado a cada
cena apresentada, sinalizando as contradições de campo e contracampo. Do lado dos muros e
cercas o silêncio, junto ao som do motor do carro e os ruídos de natureza, predominantes.
No espaço urbano, contraposto, sobressaem os ruídos da vida em urbanidade, incluindo
conversas, crianças, carros e demais sons comuns de um espaço de convívio ampliado e público.
Ao longo do documentário, a diretora narra em voice-over o processo histórico de expansão das
rodovias, a precarização das ferrovia e as políticas públicas iniciadas pela ditadura militar e
aprofundadas pelo neoliberalismo dos anos 1990.
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Figura 4: Cercamento da urbanização privada Las Palmas Tigre. La ciudad que huye, 39”.
Figura 5 - Vizinhos de frente - Urbanização privada Las Palmas Tigre. La ciudad que huye,
40”.
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Kleber Mendonça Filho
O documentário Retratos Fantasmas (2023) de Kleber Mendonça Filho, foi filmado em digital,
utilizando-se de pesquisa documental de imagens filmadas em diversos suportes técnicos, tais
como Super 8, VHS, Betacam, material de arquivo, fotografias e imagens. Esse processo de
produção constitui-se como uma ode a Recife e ao cinema, permeado pelos afetos que o
mobilizam, pela fina ironia como abordagem de sua linguagem e pela melancolia envolvida
nessas histórias.
A estreia ocorreu em circuito de festivais internacionais, como o Festival de Cannes. No Brasil,
foi lançado pela plataforma de streaming Netflix e exibido em algumas salas de cinema no
suporte fílmico de 35mm. Uma cópia foi encomendada especificamente pelo diretor para ser
rodada em algumas salas de cinemas pelo país, e posteriormente arquivada na Cinemateca
Brasileira, preservando as marcas provocadas na película pelas exibições. A intencionalidade
de criar um documento histórico na própria película do filme foi levada adiante. Assim, o
cineasta criou um documento histórico, tanto pela pesquisa e materiais utilizados, quanto pelo
apreço e cuidado com sua produção, desde a escolha dos suportes utilizados até os princípios
que guiaram a elaboração e finalização do filme, concebendo-o como resquício a ser arquivado.
O cineasta dividiu o longa-metragem em três partes, narradas por ele em voice-over. Em cada
história narrada e entre as três partes um entrelaçamento das vivências particulares do
diretor, das histórias de Recife, das salas de cinema e do próprio cinema. Todos esses elementos
são permeados pela perspectiva reflexiva dos afetos e sentimentos.
A primeira parte se passa no apartamento de Mendonça Filho, aborda a juventude de cineasta
iniciante, a história de sua mãe, historiadora, e a experiência de crescer junto ao seu bairro.
Progressivamente, assistimos ao surgimento de grades e muros, além de outros dispositivos de
segurança. Há também os edifícios gigantes que foram fechando a orla de Recife e substituindo
casas; a mudança não para aí, pois se estende aos amigos e vizinhos conhecidos. O espaço
compartilhado com a vizinhança desde a infância nas ruas foi sendo restringido e as tornando
vias de acesso em trânsito de carros, além de lugar de insegurança e medo. Esta primeira parte
traz as referências documentais que estão presentes em seus dois primeiros longas, O som ao
redor (2012) e Aquarius (2016), explicitando as imagens incidentais e sonoras que aquelas
obras traziam e funcionando como uma narração de suas origens e afetos mobilizados.
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Figura 11 Diretor e gradeado de sua residência, cena do trailer oficial de Retratos Fantasmas.
A segunda parte compreende a história do período áureo dos cinemas do centro da cidade. Essa
parte é apresentada por meio de pesquisa histórica e documental, entremeada com a experiência
vivenciada pelo cineasta como jovem estudante universitário que trabalhava nos cinemas do
Centro e documentava, filmando, os seus dias e afazeres naquele tempo. Ele participou da
experiência da gradual decadência das principais salas de cinema, seus fechamentos e a
conversão de muitas delas em templos religiosos. As salas fechadas, os templos religiosos que
surgiram naqueles antigos palácios de imagens em movimento, os espaços públicos que
decaíram onde, antes, havia lugares de circulação da população, das elites locais e
internacionais coexistentes.
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Figura 12 Croqui desenhado para o documentário, parte do trailer oficial do filme Retratos
Fantasmas.
Figura 13 Fotografia de arquivo que compõe o documentário Retratos Fantasmas. Trailer
oficial do filme.
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Na terceira e última parte do documentário, a abordagem é ficcional. Mendonça Filho solicita
um carro por aplicativo de viagens e aproveita para circular pelas ruas do centro do Recife nos
dias contemporâneos à realização do documentário. Ele indica ao motorista que haveria
paradas, e explica sua pretensão de passear ao longo do trajeto. Enquanto conversa com o
motorista, Mendonça Filho fala sobre sua profissão, e imagens de farmácias sucedem e
capturam o olhar situado no interior do veículo, filmadas em travelling. As redes farmacêuticas
ocupam os locais onde antes se localizavam antigas casas e estabelecimentos comerciais, muitas
vezes adaptando os imóveis existentes ou erguendo novas edificações para essa finalidade. As
luzes brancas dos interiores explodem na tela, ressaltando as prateleiras repletas de produtos:
trata-se de uma sociedade doente. A conversa no veículo envereda para o absurdo, assumindo
uma narrativa de medo e terror.
A contravisualidade pode ser observada nesta obra de Mendonça Filho pela abordagem
subversiva com que são realizadas as filmagens e trabalhados os temas de sua produção: os
espaços privados encarcerados progressivamente, em nome de uma suposta segurança, e a
consequente queda da qualidade de vida no isolamento, imposta gradualmente aos seus
moradores; os espaços públicos de convivência da diversidade, que entraram em decadência,
foram transformados, talvez, em escapes alternativos, como a religiosidade do mérito; e a
explicitação de um adoecimento geral da população, com a expansão das redes farmacêuticas.
Ao fim, o humor melancólico na ficcionalidade, o enfoque no fantástico e no medo.
Tanto a narrativa de Lucrecia Martel quanto a de Kleber Mendonça Filho têm a característica
de dialogar com o cinema de terror e as narrativas de horror e medo. Seus filmes costumam
adotar essa abordagem, influenciada pela formação cinéfila de ambos, e nutrida pelos filmes B
de horror, comuns nas salas de cinemas e na programação televisiva dos anos 1970. O espaço
urbano precarizado e o crescente isolamento no qual as populações foram inseridas em uma
cultura do medo, juntamente aos afetos gerados pelo empobrecimento da vida interior e a falta
do contato com o outro e, em consequência, consigo mesmo, são temas frequentemente
explorados em seus trabalhos.
Sobre Cultura e Educação: da urbanidade às cidades, possibilidades de contribuição das
expressões artísticas
No processo educacional, o espaço de vivência é lugar fundamental. É no diálogo que os
estudantes encontram ou constroem suas referências. Entender a relação entre espaços-tempo
com as memórias e experiências contribui para o desenvolvimento da aprendizagem dos
estudantes, ao se apropriarem das linguagens artísticas como provocadoras nesta ação.
Ao se pensar sobre a cidadania e sua vivência, acrescentado o progressivo desmantelamento da
malha de trocas sociais na privatização do espaço público, percebemos o impacto em nossas
sociedades, contemporaneamente. Vislumbram-se os crescentes acirramentos de nossas
sociedades, desde a idealização da urbanidade e das cidades como esfera pública de trocas
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sociais entre grupos diversos, (re)significadas com a experiência educacional, a partir do
encontro com as expressões das linguagens artísticas. Como explica Martel em seu curta-
metragem, as fraturas sociais foram sendo acirradas à medida que políticas públicas foram
forjadas, não para a coexistência da sociedade, mas para a expansão privatista. Das malhas
ferroviárias às rodovias de veículos automotores particulares, a ampliação de fortificações
privadas em contraste ao conviver público nos conduziram aos nossos tempos de desconfiança
e medo.
Em Mendonça Filho, os espaços públicos de convivência, as ruas do centro nas quais as
principais salas de cinema existiam, o transporte urbano de bondes substituídos por veículos
particulares são esvaziamentos que acarretaram a decadência e a falência da urbanidade. Porém,
é sintomático que parte das imagens documentadas seja da resistência carnavalesca, que cada
vez mais ocupa as avenidas e ruas das cidades brasileiras, com destaque para Recife nesse
cenário. Talvez nessa prática, mais do que apenas observar uma contravisualidade possível, ela
também seja estimulada.
Interessa agregar a esta discussão outra abordagem teórico-conceitual, a de colonialidade
proposta pelo grupo de estudos Modernidad/Colonialidad, do qual Walter Mignolo é
integrante. O grupo é formado por uma rede de pesquisadores que trabalham considerando
perspectivas heterogêneas e transdisciplinares, além de intelectuais militantes e comprometidos
com movimentos políticos e sociais (Soto, 2018). Mignolo avisa sobre “o lado mais escuro da
modernidade ocidental”, qual seja, a colonialidade em sua feição de colonialidade do poder.
Esse processo foi forjado desde a expansão capitalista deflagrada no Renascimento, e desde a
invasão das Américas permanece em andamento. O neoliberalismo como política de desmonte
do estado e crescente privatização, mas mais do que isso, de ação de estado mínimo para alguns
e de regras e contenção para muitos, trouxe o processo crescente de controles de nossos tempos
e do esgarçamento de nossa malha social. Nessa face, a colonialidade se sustenta nos controles
do Poder, do Ser e do Saber, atuando em nossas subjetividades e mobilizando uma política de
afetos.
Pensamos que a cidadania é algo de grande complexidade, passível de diversos entendimentos.
Entretanto, coaduno com os princípios da proposta pedagógica progressista, defendida por
Paulo Freire, na qual a alfabetização política é a base a partir da qual se objetiva o projeto
pedagógico. A conscientização crítica dos sujeitos é o alicerce que fundamenta e pode levar à
transformação social. O jovem estudante, nesse contexto, é pensado como capaz de superar a
consciência básica, alicerçado no estímulo, ao refletir sobre sua condição existencial. Para
Freire é necessário aprender a ler o mundo antes, sendo que:
O ato de aprender a ler e escrever deve começar a partir de uma
compreensão muito abrangente do ato de ler o mundo, coisas que os
seres humanos fazem antes de ler as palavras. Até mesmo
historicamente, os seres humanos primeiro mudaram o mundo, depois
revelaram o mundo e, a seguir, escreveram as palavras. Os seres
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humanos não começaram por nomear A! F! N! Começaram por libertar
a mão e apossar-se do mundo
Freire, 2011: 15.
Acrescento, ainda, a reflexão de Milton Santos sobre a coexistência de tempos, nos quais “o
espaço deve ser considerado como um conjunto de relações realizadas através de funções e de
formas que se apresentam como testemunho de uma história escrita por processos do passado
e do presente” (Santos, 2002: 153). A utilização em abordagem interdisciplinar pode contribuir
para a melhor apreensão e para a consciência crítica por Freire instigada. Como diz, mais uma
vez, Santos: O espaço são as formas mais a vida que as anima” (Santos, 2002: 103). as
imagens, sendo fílmicas ou de outros sistemas sígnicos, também são um campo de disputas e
tensões sociais, como indica Wiliam Mitchell.
A proposta apresentada na introdução deste artigo, baseada na análise de Mirzoeeff sobre o
direito a olhar, justifica a abordagem proposta pelos documentários indicados para análise e
realizada por seus documentaristas. Eles problematizaram a visualidade restritiva da
colonialidade do olhar em sua feição de colonialidade do poder. Os cercamentos (ou seriam
fortificações?) nos quais os condomínios fechados argentinos se organizaram, assim como o
engradeamento crescente dos lares de Recife e o abandono progressivo do centro da cidade e
de seus espaços de vivência urbanizada, provocaram o esgarçamento geral das alianças sociais.
A contravisualidade expressiva da linguagem cinematográfica possibilitou a contraposição às
restrições da colonialidade do poder e de suas visualidades existentes.
Na cidade, os lugares públicos são agregadores da capacidade de encontros, mas não são,
evidentemente, um espaço no qual se resolvam conflitos ou as fraturas sociais. Entretanto,
nesses lugares a possibilidade de se estabelecerem novos arranjos e se constituírem situações
de convívio, trocas e alianças, forjando possibilidades ímpares não imaginadas.
Nesse sentido, a experiência como professora universitária em uma instituição pública
proporciona cenários inesperados. Tanto em sala de aula quanto no campus universitário, a
interação entre grupos que, devido às suas origens sociais e locais de residência, antes estavam
segregados em comunidades relativamente homogêneas, abre caminho para possibilidades de
transformação e desenvolvimento de consciência crítica que, em outros contextos, seriam
improváveis ou muito difíceis de ocorrer. Nesse sentido, é importante encorajar a disposição
para experienciar a consciência crítica, e como educadores, devemos considerar o ambiente
educacional (mas não exclusivamente ele) como um espaço propício para esse estímulo.
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Bibliografia
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Modernidad/Colonialidad. Ciencia Política. N.5, enero-junio 2008.
Filmografia
Aquarius. Direção: Kleber Mendonça Filho. Roteiro: Kleber Mendonça Filho. Produção: Carlos
Diegues. Brasil: Emilie Lesclaux (CinemaScópio) Saïd Ben Said e Michel Merkt (SBS,
Mônica Brincalepe Campo
CIDADES MURADAS
POR LUCRECIA MARTEL E POR KLEBER MENDONÇA FILHO, A DISCUSSÃO SOBRE AS
RESTRIÇÕES AO ESPAÇO PÚBLICO E À CIDADANIA
165
França), 2016. (145m), son. color.
LA ciénaga. Direção: Lucrecia Martel. Produção: Lita Stantic. Roteiro: Lucrecia Martel.
Argentina: Lider Films, 2002. (100min), son. color.
LA ciudad que huye. Direção: Lucrecia Martel. Produção: Santiago Leiro, Vanina Berghella,
Fabian Beremblum. Roteiro: Lucrecia Martel. Argentina: Estudio Fantasma, 2006. (5 min), son.
color.
O som ao Redor. Direção: Kleber Mendonça Filho. Produção: Emilie Lesclaux. Roteiro: Kleber
Mendonça Filho. Brasil: CinemaScópio, 2012. (131 min.), son. color.
Retratos Fantasmas. Direção: Kleber Mendonça Filho. Produção: Emilie Lesclaux. Roteiro:
Kleber Mendonça Filho. Brasil: CinemaScópio, 2023. (93 min.), son. color.
Mônica Brincalepe Campo
Professora Associada do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia desde
2011 (UFU Uberlândia MG) e Professora Permanente do Programa de Pós- Graduação em
História da mesma Universidade. Tem experiência com ênfase em História da América
Contemporânea e História do Brasil Contemporâneo. Desenvolve pesquisa na interface Cinema
e História, Culturas Visuais e temáticas relacionadas às Temporalidades, Memória e História.