Luiz Sérgio Duarte da Silva
TESES SOBRE DIDÁTICA DA HISTÓRIA
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TESES SOBRE DIDÁTICA DA HISTÓRIA
THESES ON DIDACTICS OF HISTORY
Prof. Dr. Luiz Sérgio Duarte da Silva
PPGH-UFG
luiz_sergio_duarte@ufg.br
Resumo
A narrativa da aventura humana é o principal argumento a favor da Didática da História.
Trata-se de reconstruir e comparar procedimentos (como se narra), sentidos (porque se narra)
e conteúdos (o que se narra) de uma empresa de desfecho incerto.
Palavras-chave: Teoria e Metodologia da História, Didática da História, História e Filosofia
da Ciência
Resumen
La narración de la aventura humana es el principal argumento a favor de la Didáctica de la
Historia. Se trata de reconstruir y comparar procedimientos (cómo se narra), significados (por
qué se narra) y contenidos (qué se narra) de una empresa con un desenlace incierto.
Palabras clave: Teoría y Metodología de la Historia, Didáctica de la Historia, Historia y
Filosofía de la Ciencia
Abstract
The narrative of the human adventure is the main argument in favor of the Didactics of
History. It is about reconstructing and comparing procedures (how it is narrated), meanings
(why it is narrated) and contents (what is narrated) of a company with an uncertain outcome.
Keywords: Theory and Methodology of History, Didactics of History, History and
Philosophy of Science
Luiz Sérgio Duarte da Silva
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Teses sobre Didática da História
1 - A narrativa da aventura humana é o principal argumento a favor da DH.
2 - Trata-se de reconstruir e comparar procedimentos (como se narra), sentidos (porque se
narra) e conteúdos (o que se narra) de uma empresa de desfecho incerto.
3 - Além das filosofias da história, dos mitos de criação, dos sistemas mágicos e das
concepções religiosas, na lista de apresentação e reflexão da narrativa da aventura humana
devem constar, as condições da sociedade de risco que constitui a modernidade.
4 Como intento de produção de identidade e orientação, as narrativas da aventura humana
servem a um interesse de produção de sentido (significado e direção). A aprendizagem
histórica trata do pensamento histórico do passado. Pensar o passado historicamente é
investigar a humanidade no tempo. Para tanto, é necessário pensar como se pensa, em cada
época a sociedade: conceitos de ser como unidade e mudança, conhecimento como linguagem
codificada, fala como prática de sistema, interpretação como pergunta normalizada, memória
como construto imagético atual, imaginação como figuração substitutiva, inteligência como
capacidade de solução de problemas, consciência como intencionalidade, compreensão como
capacidade empática situada, inconsciente como parte constituinte da formação das intenções
e representações são elementos da reconstrução da vida com sentido. Quem aprende a
reconstruí-la aprende também a produzi-la conscientemente. A educação histórica questiona e
quer interferir na constituição dos estratos consciente e pré-consciente da ação e representação
humanas, na medida em que eles se apresentam como narrativa.
5 Os sentidos vivem em sistemas de substituição que são codificados. Os códigos são
produtos de contextos relacionais (social, histórica e semioticamente constituídos). Códigos
são sistemas que articulam mistos de elementos informacionais (ideias como letras do
pensamento), simbólicos (unidades de abstração remissivamente ativados) e mentais
(intenções e contextos articulados de maneira individual e qualitativamente diferenciada). Os
códigos adaptam-se e atualizam-se porque cumprem uma função prática: são dirigidos para a
solução de problemas que ameaçam a vida. A tese que estrutura a Didática da História como
área do conhecimento afirma a função orientadora e identificadora que a interpretação do
tempo possui na constituição da vida humana. Pressupõe-se a existência de representações do
tempo como valor universal. É uma tese realista, ou seja, afirma que representações do tempo
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são coisas existentes em todas as culturas. A relação entre passado, presente e futuro é
fundamental para a produção de discursos de identidade e orientação. Mais que isso, ao lado
da ideia de sociedade como todo é essa ideia de relação entre as três dimensões do tempo que
produz as categorias de conhecimento que estruturam a organização da vida prática. As
instituições sociais dependem de uma ideia de tempo. A aprendizagem histórica localiza na
época moderna uma ideia de tempo que pode ser construída crítica e racionalmente. Ela supõe
a existência da consciência histórica como objeto de construção possível por meio de
experiências, atividades e procedimentos de educação.
6 Os sentidos das histórias se relacionam com o mundo da vida daqueles que constroem e
compreendem a narrativa da aventura humana. O sentido é então aquilo que percorre e liga os
acontecimentos narrados. Sentido é a base do material de construção significativa do mundo
social. Nas narrativas o que se produz é uma imagem temporal da humanidade. vários
tipos (Rüsen) dessa imagem a que podemos denominar pensamento histórico ou leitura do
tempo. Tradicional (imitação do passado), exemplar (regradora do presente), genética
(variação circunstanciada da mudança) e crítica (negação de qualquer unidade de sentido). Em
uma época em que a informática impôs a reflexão sobre os modos fundamentais de gestão
social do conhecimento, a aprendizagem histórica requer os achados da filosofia da mente
como a disponível na obra de John Searle para reconstruir os processos que ligam os “panos
de fundo” da intencionalidade, a representação e a ação no mundo. É preciso ter acesso aos
estados superficialmente conscientes dos atores. Dispositivos de agenciamento devem ser
conhecidos. É imperativo considerar o saber da história dos processos de inscrição, como nos
disponibiliza a obra de Pierre Levy e Friedrich Kittler, para precisar a articulação entre
gêneros de conhecimento e tecnologias intelectuais na era dos armazenamento e
processamento massivo e generalizado das representações. Fato social total (Durkheim e as
categorias sociais), pensamento coletivo (Fleck e a relação entre experiência e comunidade na
circulação do conhecimento), paradigma (Kuhn e os agenciamentos), episteme (Foucault e os
modelos discursivos) são conceitos para os quais nossa atenção deve se voltar para entender a
eficácia social das representações coletivas. Necessitamos cada vez mais de uma teoria da
inconsciência e dos referenciais semiconscientes. eles nos permitem dar conta dos tráfegos
intracomunitários e intercoletivos.
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7 Consciência histórica é o produto do estudo das narrativas da aventura humana. É o
resultado da reflexão sobre a experiência histórica (o desafio da desumanidade) e do
aprendizado histórico. O aprendizado histórico é um processo de acesso e operação de
competências mentais que articulam práticas e conteúdos produtores de cultura histórica. É
também o desenvolvimento de habilidades de construção, interpretação, motivação e
utilização da experiência histórica contextual, empírica e imaginativamente reconstituída. O
estudo dos modos de perceber permite a reconstrução dos estilos de pensamento. Os avanços
da filosofia da linguagem nos tornam acessíveis tanto o poder criador do sentido das
categorias e dos atos de fala como a matização e agenciamento dos significados
momentaneamente compartilhados. A relação entre texto e imagem permite a
problematização do tipo de comunicação das comunidades digitais disponíveis nos diversos
níveis da rede mundial de computadores. Legendas e representações bidimensionais entraram
muito no elenco de índices que permitem a reconstrução de um passado cada vez mais
falsificado. Aprender e ensinar história hoje é se dar ao trabalho de movimentar-se em vários
níveis não estáveis de comunicação e ampliar a capacidade de tratar padrões de percepção.
Negacionismos, fundamentalismos se apoiam em deficiência na formação e crítica da
consciência histórica.
8 Se pensada como antidoto de posições dogmáticas o pensamento histórico tem função
exemplar. Ele pode preparar corações e mentes para uma educação em situações extremas.
Por exemplo, é possível pensar uma educação histórica antifascista (Benjamin): a) ela
investiria em imersão como experimento perceptivo que explora os recursos visuais
disponíveis no espaço imagético; b) exploraria também a sensibilidade da distração como
desvio que aproveita a velocidade do pensamento por imagens; c) encaminharia uma
abordagem corporal, teatral e afetiva dos conteúdos; d) investigaria as categorias presentes em
cada narrativa; d) refletiria sobre a lógica do pensamento histórico e sua relação com os
conteúdos do conhecimento histórico; e) habilitaria os estudantes a interpretar treinando-os na
identificação de perspectivas, estratégias, táticas e intenções na produção de textos e
representação de vivências e experiências; f) ultrapassaria o senso comum (o que todo mundo
sabe) e o bom senso (o pensamento dogmático) e aprenderia a pensar, ou seja, a encontrar
problematicamente o mundo; g) treinaria os estudantes para as tarefas de reconstrução do
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passado a partir de fragmentos e de mapeamento das forças e seus efeitos e dos sentidos e
suas direções; h) exploraria a dimensão não didática do ensino moral: moral não pode ser
identificada com racionalização, não ciência exata da educação. A educação implica
coletividade ética, liberdade e, principalmente conduta. Uma pedagogia progressista envolve
amizade, confiança, independência, crítica e experimentação; i) uma pedagogia progressista
não pode abrir mão do saber do desejo (Foucault e Deleuze), de seus dispositivos (rede de
relações entre elementos heterogêneos, arqueológicos e genealógicos) e de seus
agenciamentos (formas de expressão de fluxos extra-semióticos e de práticas extra-discursivas
de implicação recíproca).9 O problema da filosofia da história é a relação entre tradição e
modernidade. Uma cultura que se concebe como capaz de reflexão crítica dos interesses,
ordens e dinâmicas da vida social empreende a pesquisa das relações entre desencantamento,
Iluminismo e religião buscando respostas para a pergunta sobre o caráter e funcionamento do
moderno. Uma consciência das mudanças históricas dirige a educação histórica. A localização
e discussão de padrões de continuidade e ruptura são centrais para enfrentar os desafios de
uma política das convicções absolutas, uma economia das estruturas globais de relação e uma
cultura da reação religiosa e esotérica. Racionalização das esferas de valor, mutuo controle de
instituições que defendem suas posições argumentativamente e uma cultura política de
discussão pública parecem ameaçadas por forças que há bem pouco tempo pareciam vencidas.
Jörn Rüsen localiza a didática da história como dimensão prática do tratamento do tempo na
modernidade. Tanto como demanda por identidade e orientação quanto como dimensão
política da leitura do passado, o ensino e a aprendizagem históricos devem ser entendidos
como categorialmente constituídos. Mais que isso, os padrões de relação com o passado, o
presente e o futuro produzem categorias. Possuem um caráter ontológico porque definem o
sentido da mudança temporal como experiência intencional e existencial. Possuem também
uma dimensão epistemológica pois caracterizam-se pelo controle lógico e empírico dos
conceitos e procedimentos de que lançam mão. Faz parte desse sistema classificatório a
figuração narrativa: tropos linguísticos mantém a tensão entre semelhança e diferença que
constitui a linguagem e permite a representação do mundo. A ciência da história depende da
constante reflexão e avaliação de suas referências, métodos e estratégias de representação,
argumentação e figuração. A dimensão prática é politicamente concebida pois depende do
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jogo das forças sociais e das necessidades de orientação da ação condicionadas emocional,
perceptiva e institucionalmente. Além disso, são submetidos a constante reflexão e avaliação
de referências, métodos e estratégias de argumentação e figuração.
10 um saber da história da democracia como o arranjo que equilibra direitos e deveres
pode produzir sujeitos políticos capazes de resistir a apelos autoritários que reconfiguram a
dinâmica da vida parlamentar. Só uma esfera pública educada historicamente pode enfrentar
uma situação na qual a relação entre os cidadãos e representantes sofre a influência de
aparatos de mídia teletécnica. uma sólida cultura histórica pode digerir e resistir aos
interesses e padrões que caracterizam as informações e seu ritmo de comunicação na
atualidade. Rüsen fala de metáforas vivas. Antes da vida narrada o tempo. Este vela-se e
revela-se: vigora. Marca a realidade humana como paradoxo. A história é consciência e acaso
concreto. A verdade é sobreposição das máscaras, substituição dos motivos, relatividade das
épocas e culturas, desvelamento sempre adiado pela remissão. Do tempo, como de qualquer
coisa, temos limites, contornos. O que vigora muda permanecendo e permanece mudando.
Rüsen é narrativista sem deixar de ser objetivista. Parece uma imagem invertida de Foucault.
As contribuições da filosofia da linguagem se somam à tradição do historicismo. Critica
integradora que renova a consciência histórica e resolve alguns de seus impasses. Esse
trabalho se faz com um diálogo com o kantismo, a história da cultura de weberiana e com a
tradição fenomenológica da hermenêutica.
11 A tarefa da educação histórica é imprimir consciência histórica o em discentes e
docentes, mas também na política educacional. uma escola que pesquise a sua história
pode encontrar a sua função. disciplinas que problematizem a constituição dos seus
interesses de conhecimento e o sentido social historicamente constituído dos conteúdos que
apresentam podem justificar-se. Todo saber legitima-se narrativamente. A forma da narrativa
histórica na modernidade é a ciência da história. Ciência da história é o saber da constituição
da moderna consciência do tempo. A vida humana é história. Esse é o fundamento do
humanismo que orienta a didática da história. O conhecimento das coisas humanas depende
do mundo da vida (mais que da possibilidade de objetivação). As estruturas que constituem a
apreensão da realidade humana dependem de cultura, época e remissão linguística. As
ciências da cognição e do cérebro, a sociologia do conhecimento e as epistemologias
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aristotélica e kantiana as chamam de categorias. Platão as denominava ideias, Searle
intencionalidade, Rüsen as denomina consciência histórica.
12 Comparativa, construtiva e compreensivamente apresentados os grupos humanos,
entendidos como formações societárias culturalmente constituídas, podem enxergar-se como
realidades temporais e virtualidades potenciais. A história se torna viva porque pode ser
recriada na discussão de seus sentidos. Pode ser construída pela disposição formadora do
saber da transitoriedade. Pode ser mantida pelo saber das estruturas e dinâmicas das coisas
simbólica, social e historicamente constituídas. A hermenêutica de Rüsen (que segue
Gadamer) é a técnica de tratamento do que não está claro. Filosoficamente é a doutrina da
interpretação e da compreensão. Os fatos da liberdade, diferentemente dos objetos da
natureza, dependem da razão prática que está sujeita aos paradoxos da realidade humana. A
razão pura pode dar conta de fenômenos da experiência possível. A razão prática tem a
autonomia da causalidade por liberdade. A objetividade possível e alcançável no mundo da
vida tem na relatividade uma condição positiva. Bom não confundir relatividade cultural com
relatividade de valores. A primeira nos libera para a remissão a segunda nos restringe pela
responsabilidade. Só há história viva.
13 A aplicação prática, a consideração normativa, a pesquisa empírica e o refinamento
teórico são variáveis da reflexão sobre a aprendizagem histórica. O planejamento dos
experimentos didáticos na sala de aula deve estar em equilíbrio com a escolha criteriosa dos
valores que se quer criticar, defender e implementar. A localização e exposição do problema
que orienta cada exame são possíveis se coordenadas com o tratamento apropriado dos
avanços da discussão na ponta da investigação disciplinar. A didática da história é a ponta
fina da teoria da história. É na aplicação que se justifica o valor de um conceito de história.
No que respeita ao tratamento hermenêutico dos fatos históricos: a) o intérprete depende da
conexão de sentido que ele procura compreender; b) uma comunidade de sentido entre a
expectativa da interpretação e o território das referências. Ambos são humana e
paradoxalmente delimitados; c) diferença (as remissões são acontecimentos) assim como
repetição (congenialidade, universais, historicidades e aspirações de cunho emocional,
material e psicológico a condicionam); d) o sentido sofre pressão da linguagem e da realidade;
e) os discursos possuem história, assim como os enunciados, embora as enunciações, os atos
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de fala e as rosticidades sempre possam fugir ao registro, por meio da recriação e atualização
dos códigos; e) vivência (o que foge à objetivação) e experiência (o que cria, destrói ou
renova a vida) não são da mesma forma incorporados ao saber do passado: a vivência é
território do ente e pode viver na atualidade, a experiência pode acontecer e portanto, pode
também não. A história é só chance, sorte e trabalho.
14 A gestão didática do passado impõe o tratamento do fragmento, a comparação das
narrativas e o enfrentamento das emoções ligadas a eventos. Estes procedimentos pertencem à
dimensão ética tanto quanto à dimensão epistemológica: permitem localizar a camada do
conhecimento e da aprendizagem da história que mobiliza emoções. A sua aplicação
pressupõe uma teoria da ação que investigue intenções e contextos. O seu aprendizado
desenvolve o saber dos microprocessos interativos, dos agenciamentos de desejo e dos
dispositivos discursivos. Tratar o que pesa e dói é tão importante quanto o que satisfaz e
afirma. O passado é o território da ação terapêutica, não o lugar das políticas da memória.
O sentido do passado pode ser alterado no presente. Esse trabalho mental altera perspectivas,
protege a experimentação, relembra a incompletude e atualidade do que é humano. Não temos
tradição, exemplo e crítica como modelos de pensamento histórico podemos tratá-lo como
variedade, mudança e circunstância, sobretudo, como oportunidade e abertura. Experiências
pessoais traumáticas e a provocação que emana da desumanidade podem ser enfrentadas por
uma interpretação humanista marcada pela defesa dos direitos e dignidade da pessoa.
Comunicação intercultural, proteção da natureza, reconhecimento da alteridade e
compreensão da multiperspectividade e da multifatorialidade são fundamentais para a
alfabetização histórica. Os desafios da comunicação midiática, da lógica dos sistemas de
regulação e informação nos desafiam hoje, mas não podemos esquecer os recursos de que
dispomos. A hermenêutica (nascida na retórica antiga, renovada pelos debates da reforma e
tornada objeto da reflexão filosófica no século XIX e XX) causou a revolução da consciência
histórica. À ampliação do mundo humano pelo reconhecimento da diversidade dos sistemas
simbólicos e das mudanças que eles sofrem somou-se a descoberta historicista de que não
sentido da história, apenas metas limitadas. Claro que esses ganhos podem ser entendidos
também como perdas: um fundamentalista o amaldiçoa como heresia que trai a escrita de deus
ou a ordem cósmica, um niilista enxerga esses mil olhos como perda de sentido, um
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dogmático como ameaça a seus imutáveis valores. Uma lógica que não valoriza a remissão,
ao engessar os símbolos e sua relação, analisa determinando, interpreta reduzindo e descreve
simplificando. Não percebe camadas nem dimensões da realidade. O que se produz é um real
doente, um imaginário obscuro e um simbolismo comprometido. O que seria ganho opera
redução. Corações e mentes não preparadas para a alteração dos padrões de experiência e
percepção reagem defensiva, violenta e destrutivamente. Regimes autoritários e totalitários
nascem dessa nova forma do paradoxo: a liberdade que cria a prisão.
15 Não consciência correta, consciência em formação. Só temos complexos, incertos,
imprevisíveis, nuançados resultados em educação. O que se espera é que teoria e prática
pedagógica estejam em relação de reciprocidade e que a dificuldade do processo ensino-
apredizagem possa ser exercitado através de disposições de reinscrição, resituação que
explorem as virtualidades do jogo, do paradoxo e da indeterminação. Trata-se de abandonar o
gerencialismo e o culto à performance. Educação não é administração nem desempenho. O
cálculo da educação está sempre por ser reinventado. Não temos equações que resolvam o
modelo de uma interação que depende de tempo, lugar, recursos e contextos. O sentido não é
redução, é construção. Não há soberanos, não há a voz, a identidade, a agência, a experiência.
O desafio da educação é a exploração da instabilidade. A educação é a instituição do
indecidível, a ciência da remissão, do adiamento e da cumplicidade. Educação não é para
profissionais, é para amadores. O interesse em didática da História e a repercussão de uma
filosofia da história que parte da educação histórica de Rüsen podem ser entendidos a partir
do mergulho na história do historicismo. Superar os impasses do relativismo histórico com a
releitura de Droysen (o sistema do conhecimento histórico), Burkhardt (a reconstrução do
todo pela via da montagem epocal), Dilthey (a necessidade da consideração dos aspectos
orgânicos da vida), Troeltsch (o individualismo religioso como fenômeno de continuidade e
vitalidade da tradição), Weber (as direções da rejeição do mundo) sustentam uma atualização
do pensamento histórico moderno. O conhecimento histórico é possível de três modos
distintos: teoricamente (relação entre conceito e caso, universal e particular), categorialmente
(relação entre universais) e configuracionalmente (relação entre particulares). O primeiro e o
segundo modos não são falseáveis porque teorias e categorias o forma à própria
experiência. O que temos aqui são três formas diferentes de compreensão. Compreensão é um
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entre-lugar. Ela se localiza entre as ocorrências no mundo e as relações entre conceitos que
podemos conceber para explicar esses eventos. Segundo: toda compreensão quer explicar um
todo e faz isso linguisticamente, usando metáforas e a capacidade, comum nos seres humanos,
de lidar com coisas que substituem, ou seja, com símbolos. Um todo pode ser um evento
concreto, um signo (coisa que substitui em processos situados e codificados) ou uma relação.
Pode-se fazer isso julgando (afirmando ou negando), inferindo (seguindo premissas) ou
narrando (informando sequencialmente). Muito importante é perceber que em qualquer
variante se trata do todo. O objetivo é intuir o todo. Mais que isso, preferimos o que resume e
sintetiza. Somos dependentes de imagens, elas simplificam e modelizam. Rüsen aprendeu
com Louis Mink que a narrativa é uma forma de cognição que opera por enumeração de
cenas. Na narrativa, cada cena está constituída por metáforas vivas, tipos, paradigmas,
personagens, ações, instituições, intenções, relações e gestos.
16 A educação histórica produz discernimento como capacidade de crítica das operações
simbólicas e práticas sociais da vida cultural. Na modernidade ela tem a função de desmontar
padrões de experiência e percepção que orientam nossas disposições e preocupações. A
imaginação tem poder de criar confusão (substituindo o distante pelo próximo ou o ausente
com o presente). Mas ela tem poder regenerador dando acesso à realidade da substituição ou
fingimento e seu poder adaptativo. Não razão sem imaginação e vice e versa. Educar é
transformar e recuperar. Para a História (a disciplina, a ciência) vale saber que ela conhece
configurando. Mesmo que possamos exercitar experimentos teóricos e mesmo usá-la para
fazer ensaios categoriais de inclusão, a História conhece narrando. Ela faz isso porque seus
conteúdos são centros de relações concretos, fatos. Algo que acontece no mundo humano.
Mesmo que tenhamos muito cuidado em usar esse adjetivo que tende sempre a se
substantivar. Os modos de compreensão são irredutíveis entre si. Mas é central saber que
compreender a relação de partículas subatômicas (que não podem ser pensadas a não ser
como construtos hipotéticos) afinal não é tão diferente assim de tentar compreender o
significado da travessia do Rubicão. A dificuldade está no acesso à experiência. Conceitos e
categorias criam experiência, mas não podem ser objeto de experiência. Mas interessa saber
que a função da experiência não é a descrição e sim o tratamento de um todo. Claro que o
todo passa a ser o problema. Podemos acrescentar detalhes (o que nem sempre é possível).
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Contamos com nossa capacidade de compreender o todo figurando-o, imaginando-o. Para os
interessados em universais isso é chato, mas para mentes que inferem (caçadores, médicos e
detetives como Ginzsburg ensina) isso é divertido e inteligente. A História tem que preferir a
operação configurativa por causa da sua obrigação de respeitar o que aconteceu. Por isso
contextos e detalhes são importantes. Microprocessos realizam a direção dos valores e ações
de toda uma época. Um gesto desencadeia um furacão.
17 - A principal contribuição da filosofia analítica com relação à ciência da História foi o
enredo. A especulação sobre o processo histórico, o trabalho da filosofia da história, não
pode dispensar a teoria do conhecimento histórico. A lógica da narrativa histórica evoluiu
tanto a partir da comparação com a literatura (herança oral, significado remissivo, verdade
velada, perspectiva integradora, personagem em rede, foco narrativo, antecipação, recuo,
discurso, heteroglossia, recepção, lógica não-linear, o saber dos tropos, narração, narrativa)
quanto como tratamento da frase narrativa (dupla temporalidade, figuração,
perspectiva).Tanto a explicação formal como o modelo de predição (dedução regular a partir
de condições iniciais) exige leis gerais. Em culturas estas são sempre locais. A presença do
narrador altera as condições iniciais. A dedução nunca está completa porque os eventos não
estão todos acessíveis. Exigir condições ideais de coisas que portam valor situado e vivo é um
absurdo. Os modelos são extremos que funcionam em tensão com o que pode ser
reconstruído. A tensão permite figuração, comparação e compreensão. Na América Latina a
experiência do tempo e a reflexão epistemológica dependeu sobretudo de empreendimentos
literários. Foram eles que chamaram a atenção para o tipo de leitura nascida da experiência
americana. O ensaio foi o lugar preferencial da discussão política, social, econômica e
cultural. Ao lado do romance foi o lugar preferencial de registro dessa leitura. O ensino e a
aprendizagem do passado e de sua relação com o presente e com o futuro foi sempre
dependente dessa mistura de conceito e imaginação que o espaço híbrido do ensaio permite. A
busca de identidade do ensaio e do romance latino-americanos transformou-se em versão da
literatura mundial. Essa versão do surrealismo é também filosofia da história e teoria da
fronteira. O pensamento americano antecipou mudanças narratológicas, acrescentou
elementos figurais e atualizou a leitura do tempo ao encaminhar sua pesquisa por identidade e
orientação.
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18 - O que a “geração do boomencontrou foi a pluralidade de culturas e a história das várias
sínteses desse processo. Violência e o diálogo construíram as nações também no Novo
Continente. O improviso e a imaginação ainda hoje marcam sua história política. A
instabilidade de povos novos e a experiência de transfiguração étnica produziu a experiência
americana. Produziu também a dificuldade de tratar o passado. Adiamento que atrasa o
retorno aos traumas. Transfere-se para as soluções absolutas da imaginação a montagem do
quebra-cabeça labiríntico. Mas foi a convivência de mundos e imaginários que criou e fez
sobreviver o continente-síntese América. A compressão tempo-espaço não deve ser entendida
como deformação e degradação. É potência produzida pela fusão dos continentes. Ela
ampliou as possibilidades da liberdade. Não são só revolução, traição, gentileza ou hipocrisia.
A América não tem uma maior facilidade em compreensão. Não é mais tolerante e aberta.
Mas também não é simples repetição, desgoverno, mentira, descontinuidade e culpa. Apenas
humanos no continente novo.
19 Os ensaístas destinaram o seu discurso para um outro, o Ocidente. Eles se consideravam
parte marginal dele e falaram a partir da sua fronteira. Fizeram a pesquisa do espaço
americano. Interpretaram o continente, suas províncias e seu tempo (a modernidade de
fronteira). O projeto do caráter americano é essencialista. Hoje é melhor fazer a crítica desse
discurso: reconstruir como americanistas pensaram a história. Trata-se de não cair na
armadilha de negar ou afirmar “a” filosofia americana da história. Para mim, trata-se de
localizar conceitos e procedimentos relevantes para as ciências da cultura na ensaística
americana. Ajudar a produzir uma filosofia crítica que leve a sério categorias como
miscigenação, retórica barroca, mito-poética latino-americana, hibridismo, transculturação,
entre-lugar. Levar a sério a tese da experiência singular é simplesmente continuar fazendo
história. América é mais um experimento de ensino-aprendizagem. Mais um exercício de
compreensão e interpretação, de análise e síntese, de diferença e repetição. O discurso do
caráter americano é idealista, historicista e romântico. O pensamento americano está cheio de
promessas. Mas no caso dos ensaístas (nossos romancistas) houve um tratamento da
experiência americana. A direita sempre viu degradação e deformação que demandam
autoridade e força. A esquerda e os liberais devem preparar-se para assumir os desafios da
construção. uma didática da história (entendida como experimento sistêmico e situado),
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praticada como aproximação dos desafios da reflexão filosófica e que parta dos problemas
cotidianos poderá nos ajudar a viver e construir a América. A educação histórica da América
está tanto na ponta da teoria da história quanto na sala de aula.
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Luiz Sérgio Duarte da Silva
Possui graduação em Licenciatura Em História pela Universidade de Brasília (1985),
mestrado em História pela Universidade de Brasília (1990) e doutorado em Sociologia pela
Universidade de Brasília (1996). Atualmente é pesquisador visitante -
Kulturwissenschaftliches Institut e professor adjunto da Universidade Federal de Goiás. Tem
experiência na área de História, com ênfase em História da Cidade e Teoria da História,
atuando principalmente nos seguintes temas: história cultural, teoria da história, história
urbana, história contemporânea e teoria da modernidade.