Solange Straube Stecz, Rafaela Calil Mussi Lima e Elianne Ivo Barroso
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A MEMÓRIA COMO OBJETO DE PRODUÇÃO AUDIOVISUAL
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MARATONA AUDIOVISUAL
A MEMÓRIA COMO OBJETO DE PRODUÇÃO AUDIOVISUAL
MARATÓN AUDIOVISUAL
LA MEMORIA COMO OBJETO DE PRODUCCIÓN AUDIOVISUAL
AUDIOVISUAL MARATHON
THE MEMORY AS AN OBJECT OF AUDIOVISUAL PRODUCTION
Solange Straube Stecz
1
Universidade Estadual do Paraná/Brasil
labcineducacao@gmail.com
Rafaela Calil Mussi Lima
2
Universidade Estadual do Paraná/Brasil
rafaelaccalil@gmail.com
Elianne Ivo Barroso
3
Universidade Federal Fluminense/Brasil
elianne.ivo@gmail.com
RESUMO
Este artigo tem como principal objetivo observar a produção audiovisual desenvolvida para a
Maratona Audiovisual realizada em 2021, Brasil e Uruguai, com o uso do dispositivo
Histórias dos Objetos do projeto Inventar com a Diferença, a partir dos conceitos de memória
individual e coletiva. Traz os conceitos de Pierre Nora, Tzvetan Todorov, Jacques Le Goff,
Maurice Halbwachs e Lev Vygotsky, e sua relação com os seis vídeos produzidos para a
1
Solange Straube Stecz - Doutora em Educação/UFSCAR. Coordenadora e docente do programa de Pós-
Graduação em Arte e professora do Curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Estadual do Paraná.
Membro do Comitê Brasil, Programa Memória do Mundo da UNESCO. Integra o GT Artes, educação e
cidadania do CLACSO - Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais
2
Rafaela Calil Mussi Lima - Graduada em Letras Português e Inglês e Mestranda em Artes/PPGARTES da
Universidade Estadual do Paraná.
3
Doutora em Comunicação e Cultura pela UFPR e Pós-Doutorado pela Université du Québec Abitibi-
Témiscamingue. Professora Associada II e coordenadora do Labores - Laboratório de Extensão e Pesquisa da
UFF. Professora dos Programas de Pós-Graduação em Mídias Criativas (PPGMC) da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ) e Programa de Pós-Graduação em Cinema e Audiovisual (PPGCINE) da Universidade
Federal Fluminense (UFF). Atualmente é vice-coordenadora do PPGCINE/UFF.
Solange Straube Stecz, Rafaela Calil Mussi Lima e Elianne Ivo Barroso
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A MEMÓRIA COMO OBJETO DE PRODUÇÃO AUDIOVISUAL
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Maratona. Além disso, propõe-se a evidenciar a importância da cooperação internacional
Brasil/Uruguai na difusão de práticas alternativas na produção audiovisual e seu uso na
educação.
Palavras-Chave: Audiovisual, Educação, Memória, América Latina
ABSTRACT
This article has as main objective to observe analyzing the audiovisual productions developed
for the Audiovisual Marathon held in 2021, Brazil and Uruguay, with the use of the device
Object Histories from the project "Inventar com a Diferença" from the concepts of memory,
individual and collective,. It brings the concepts of Pierre Nora, Tzvetan Todorov, Jacques Le
Goff, Maurice Halbwachs, and Lev Vygotsky and their relation with the six videos produced
for the Marathon. Furthermore, it proposes to highlight the importance of the Brazil/Uruguay
international cooperation in the diffusion of alternative practices in audiovisual production
and its use in education.
Keywords: Audiovisual, Education, Memory, Latin América
RESUMEN
El objetivo principal de este artículo es observar la producción audiovisual desarrollada para
la Maratón Audiovisual realizada en 2021, Brasil y Uruguay, utilizando el dispositivo
Histórias dos Objetos del proyecto Inventar com a Diferença, a partir de los conceptos de
memoria individual y colectiva. Trae los conceptos de Pierre Nora, Tzvetan Todorov, Jacques
Le Goff, Maurice Halbwachs y Lev Vygotsky, y su relación con los seis videos producidos
para la Maratón. Además, propone resaltar la importancia de la cooperación internacional
Brasil/Uruguay en la difusión de prácticas alternativas en la producción audiovisual y su uso
en la educación.
Palabras clave: Audiovisual, Educación, Memoria, América Latina
Solange Straube Stecz, Rafaela Calil Mussi Lima e Elianne Ivo Barroso
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A MEMÓRIA COMO OBJETO DE PRODUÇÃO AUDIOVISUAL
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La vida no es la que uno vivió, sino la que uno recuerda y cómo
la recuerda para contarla
4
.
Gabriel Garcia Márquez
1. Introdução
A história de uma pessoa se constitui de diferentes sentidos permeados por suas relações e
memórias a partir de um passado recordado ou reinventado. É a soma de suas vivências
pessoais, explicitada através de fragmentos de sua memória e da tessitura de lembranças
individuais, somadas à sua subjetividade e à memória coletiva que as envolve.
A memória, segundo Aristóteles, é um conjunto que agrega as sensações (afeto), a imaginação
e o tempo. Para ele, experimentar a reminiscência não é encontrar o conhecimento das formas
inteligíveis, além do sensível, mas apreender novamente um conhecimento científico, uma
sensação, ou uma lembrança (Morel, 200 p.15).
As memórias são transmitidas entre gerações e por meio das trocas de vivências e
experiências da comunidade em uma relação dialética sujeito, cultura e história, como afirma
Galvão (2020, p. 436). Em artigo no qual trabalha o conceito de memória a partir da teoria
Histórico-cultural, traz o pensamento de Vygotsky, o qual podemos associar à proposta deste
texto que se propõe à análise de uma Maratona Audiovisual Brasil/Uruguai.
Realizada em 2021, a Maratona foi uma produção audiovisual realizada entre equipes
compostas por estudantes, professores brasileiros e uruguaios, tendo como ponto de partida
um dispositivo do “Projeto Inventar com a Diferença - História dos Objetos
5
. A proposta nos
remete às memórias e afetos de cada personagem dos seis vídeos produzidos e que podemos
associar à ideia deste artigo:
Ao ser capaz de imaginar o que não viu, ao poder conceber o que não
experimentou pessoal e diretamente, baseando-se em relatos e
descrições alheias, o homem não está encerrado no estreito círculo da
sua própria experiência, mas pode ir muito além de seus limites
apropriando-se, com base na imaginação, das experiências históricas e
sociais alheias.
Vygotsky, 1987: 21 in Galvão, 2020: 436.
4
A vida não é a que cada um viveu, mas a que recorda e como a recorda para contá-la.
5
https://www.inventarcomadiferenca.com.br/apresentacao/
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2. Cooperação Internacional
A Maratona Audiovisual Brasil/Uruguai 2021 foi uma ação do projeto “Educação
Audiovisual em Formação de Docentes: Uma Área de Inovação Educacional”, realizada pelo
Programa de Cooperação técnica da ABC (Agência Brasileira de Cooperação), ligada ao
Ministério das Relações Exteriores do Brasil e à AUCI (Agência Uruguaya de Cooperación
Internacional) do Governo do Uruguai.
Esse acordo de cooperação internacional foi firmado entre o Programa Cineduca do Consejo
de Formación en Educación (CFE) da Administración Nacional de Educación Pública
(ANEP) do Uruguai Cineduca e duas instituições brasileiras, a Universidade Estadual do
Paraná, por meio do Laboratório de Pesquisa e Extensão em Cinema e Educação -
LabEducine e do Programa de Pós-Graduação em Artes PPGARTES, e a Universidade
Federal Fluminense, pelo curso de Licenciatura em Cinema e Audiovisual. Ao longo do
projeto, também foram executadas ações como as oficinas “Inventar com a Diferença” em
Montevidéu (2019) e Narrativas Docentes em Curitiba (Paraná, 2019).
O projeto se encerra no primeiro semestre de 2022 com um seminário online e o lançamento
de dois e-books com um inventário de experiências educativas em cinema e audiovisual
vivenciadas ao longo desses anos pelas três instituições.
Sua finalidade era, de uma forma horizontal, trocar experiências, estimular, sistematizar e
criar mecanismos críticos e investigativos das práticas de ensino audiovisual para docentes de
escolas de ensino fundamental e médio nos dois países. Partiu-se da ideia da importância
atribuída à Educação, em que o audiovisual é peça-chave para a expressão dos sujeitos e sua
compreensão dentro de uma sociedade que explora das formas mais diversas a imagem e o
som.
No Uruguai, o Programa Cineduca desenvolve a educação audiovisual como saber
constitutivo do perfil de todos os docentes uruguaios. O programa gera práticas e experiências
educativas diversas compartilhadas com a comunidade internacional, entendendo sua
configuração como uma oportunidade de inovação educativa e de inclusão social.
Considerado uma unidade acadêmica de pedagogia audiovisual, dentro do Conselho de
Formação em Educação, da ANEP, o CINEDUCA exerce a promoção da formação do
docente como educador audiovisual através de propostas de pesquisa, extensão e ensino. O
centro de sua proposta era o desenvolvimento de capacidades em um educador criativo, a
compreensão da cultura em sua função social e cultural, a inclusão dos saberes comunitários
no fazer pedagógico e um trabalho horizontal com o educando.
6
Os parceiros brasileiros do projeto, a Universidade Federal Fluminense e a Universidade
Estadual do Paraná/LabEducine
7
realizaram uma série de atividades das quais destacamos
6
Tradução livre de trechos das informações da página web http://cineduca.cfe.edu.uy/index.php/quienes-somos
7
http://fap.curitiba2.unespar.edu.br/noticias
https://www.youtube.com/watch?v=8tiqWRobWRs
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aqui a Maratona Audiovisual. A proposta atende o desenvolvimento de ações que contribuam
para uma educação de qualidade como garantia efetiva para a igualdade e inclusão de
estudantes brasileiros e uruguaios. Também aponta para o papel fundamental que o
audiovisual cumpre na educação nos dois países e a necessidade de formação de docentes
habilitados a trabalhar em sala de aula e atender a demanda crescente de crianças e
adolescentes que são afetados cotidianamente pelas imagens e sons.
3. Maratona Audiovisual
8
Realizada entre os dias 19 e 23 de abril de 2021, a ação desenvolveu atividades ligadas à
produção audiovisual colaborativa, com a integração de estudantes oriundos do Brasil e do
Uruguai. Foi uma atividade planejada em 2017 quando do início do Projeto, com o
desenvolvimento de várias atividades em conjunto focadas na transferência de conhecimentos.
No ano de 2020, com a pandemia da COVID-19, foi preciso readequar as ações previstas
presencialmente. Entre elas estava a Maratona Audiovisual, que aconteceu de forma remota.
A ideia inicial era realizar a maratona audiovisual de Educação Audiovisual em Formação de
Docentes na fronteira entre Rivera (Uruguai) e Santana do Livramento (Rio Grande do Sul,
Brasil). Ali, uma conurbação sem distinção clara de onde começa ou termina um país,
lugar em que se fala uma língua “inventada” que mistura português e espanhol em um gesto
de uma contracartografia. Ou seja, uma dinâmica social e local que questiona a rigidez dos
mapas que delimitam com traços e pontos a divisão do território. Ademais, a escolha do lugar
se deu porque, na parte uruguaia, localiza-se o Instituto de Formación Docente de Rivera
ligado ao Cineduca, e, do lado brasileiro, a Unipampa - Universidade Federal do Pampa, com
a qual pretendíamos fazer uma parceria para sediar a Maratona Audiovisual e convidar os
estudantes da Unipampa a participar do evento. Veio a pandemia da COVID-19 e a
necessidade de adaptar a atividade para uma versão remota. Mas a determinação e a
perseverança das instituições de ensino envolvidas no projeto tornaram possível essa ação a
partir de uma logística verdadeiramente de cooperação. Houve um atraso de mais de seis
meses com várias reuniões online preparatórias e, finalmente, a Maratona Audiovisual
aconteceu entre 19 e 23 de abril de 2021.
Em um momento tão grave como o da pandemia, o cinema e o audiovisual despontaram como
um modelo de vida em que a colaboração e a solidariedade são a chave para a boa realização
de atividades educativas. A força do coletivo e a pressão do tempo para a produção
demonstraram que as barreiras da língua, as diferenças culturais e as adversidades da
comunicação online foram facilmente transponíveis através da expressão audiovisual. Foi
uma experiência rica e proveitosa, que abriu perspectivas, possibilitou novas amizades e
ampliou as reflexões sobre o papel do audiovisual. O projeto, realizado de modo online,
https://www.youtube.com/watch?v=IFYOSpVVPGg
8
A coordenação da Maratona esteve a cargo de Cecilia Etcheverry (Cineduca), Elianne Ivo Barroso (UFF),
Solange Stecz (Unespar) e contou com o apoio técnico de Rafaela Calil (LabEducine/Unespar).
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reuniu 42 estudantes e professores em seis grupos para a produção de vídeos que retratassem
a memória e a história oral, e também para:
(...) 'registrar e compor imagens que falem sobre outros tempos e
outras formas de se relacionar com o mundo, sobretudo tradições e
hábitos que têm sido transformados pela reconfiguração das cidades e
do cotidiano. Estimular uma atenção às narrativas da comunidade.
9
Para a Maratona Audiovisual foi escolhido o dispositivo do Inventar com a Diferença
História dos Objetos, válido para todos os grupos. Cada equipe deveria produzir um filme de
no máximo 5 minutos, com uso do dispositivo escolhido. Foi recomendada a leitura dos
Cadernos do Inventar: Cinema, Educação e Direitos Humanos
10
, com o propósito de que
todos os participantes se familiarizassem com os conceitos e metodologia desta proposta.
HISTÓRIAS DOS OBJETOS
o que? Filmar uma pessoa idosa e a relação afetiva que ela estabelece
com algum objeto.
por quê? Valorizar a memória e a história oral; registrar e compor
imagens que falem sobre outros tempos e outras formas de se
relacionar com o mundo, sobretudo tradições e hábitos que têm sido
transformados pela reconfiguração das cidades e do cotidiano.
Estimular uma atenção às narrativas da comunidade.
como?
1. Encontrar uma pessoa idosa da comunidade que fale sobre algum
objeto que esteja muitos anos na família ou que seja, de alguma
forma, significativo para esta pessoa.
2. Primeiro, utilizar a câmera para gravar somente a narração (o
áudio). A narração deve durar entre um e três minutos.
3. Separadamente, filmar este objeto e produzir imagens
que criem relações com esta narração, explorando a duração dos
planos e os enquadramentos.
4. Montar as imagens filmadas colocando os objetos em contexto com
a narração."
Cadernos do Inventar, 2016: 40.
9
Cartilha da Maratona para os participantes.
10
https://www.academia.edu/30703627/Cadernos_do_Inventar_com_Diferen%C3%A7a
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O dispositivo foi a base para o desencadeamento do processo criativo das equipes e consistia
na relação entre uma pessoa idosa e um objeto, buscando o significado em suas
memórias/lembranças.
O projeto Inventar com a Diferença foi desenvolvido pelo Departamento de Cinema da
Universidade Federal Fluminense. Foi idealizado e coordenado pelo professor Cezar
Migliorin, conjuntamente com os pesquisadores Isaac Pipano, Luiz Garcia e equipe, realizado
com o apoio e fomento da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da
República, em 2014. Constituiu uma rede de estudantes e educadores em todo o país,
colaborando com a criação de metodologias e processos que possam ser disponibilizados a
educadores e educadoras do país, com autonomia suficiente para definir suas práticas e
estabelecer suas próprias dinâmicas de produção no campo da educação. (Cadernos do
Inventar, 2016, p. 11). Como enfatiza Migliorin sobre as bases do Projeto, “mais do que do
que apresentar esse ou aquele mundo, o cinema constitui-se como uma experiência em si de
invenção (...) eis uma dimensão ético-política que acreditamos indissociável do fazer
cinematográfico e que deveríamos enfatizar no “Inventar com a diferença” (2015, p. 49).
Dessa forma, as ações desenvolvidas com professores, alunos e mediadores visavam ao
desafio de buscar práticas educativas que priorizassem o protagonismo dos sujeitos e
comunidades envolvidas.
4. Produção dos vídeos
11
Os estudantes que participaram da Maratona foram selecionados entre os integrantes dos
projetos do Cineduca no Uruguai, do LabEducine em Curitiba (PR/BR) e Niterói (RJ/BR), e
divididos nos grupos a partir de suas habilidades com produção audiovisual.
12
Para a
11
Cronograma do trabalho dos grupos
19 de abril de 2021 , segunda-feira - 19 horas - Abertura da Maratona Audiovisual - Transmissão Canal do
YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=8tiqWRobWRs
20 de abril, terça-feira - 9 horas - Reunião dos grupos para a apresentação dos participantes e um dos membros
da Comissão Organizadora. A partir das 10 horas - Definição do representante do grupo perante a Comissão
Organizadora e distribuição das tarefas. Roteirização e produção das imagens e sons.
21 de abril, quarta-feira - 14 horas - Horário limite para o compartilhamento de drive contendo TODO o
material bruto com a Comissão Organizadora.
22 de abril de 2021, quinta-feira - 19 horas - Compartilhamento do filme de todos os grupos montado com até
5 minutos contendo a vinheta de abertura da Maratona Audiovisual, título do trabalho, créditos finais com a
identificação dos participantes e vinheta de encerramento.
23 de abril, sexta-feira - 18 horas Exibição dos filmes e considerações finais da Comissão Organizadora no
Canal do YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=IFYOSpVVPGg
12
Participantes: Grupo1 - José Alfredo Braga Reis (RJ); Solange Salvagno (UR); Stephanie Giacosa (UR);
Claudio Carbajal (UR); Bárbara Murakami de Albuquerque (PR); Wagner de Alcântara Aragão (PR);
Grupo 2 - Anna Cecilia Prestes Costa (RJ); Richerd Bertiz (UR); Gonzalo Daniel Durán Larrañaga; (UR);
Mariana E. Abeleira Biaus (UR); Roberta Jorge da Silva Wisnievski (PR); Débora Golia Michaelides (PR);
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comunicação entre os membros dos grupos, foram criados grupos de Whatsapp e salas
virtuais na plataforma meet, abertas entre o dia 19/04/2021 e 23/04/2021. Para a divisão das
tarefas dentro dos grupos, a premissa era de um trabalho coletivo. Todos deveriam participar
das etapas de produção e pós-produção, mas também cada grupo escolhia um representante
que atuava como contato entre a comissão organizadora e seus membros. Entretanto, havia
ainda a orientação de que houvesse um responsável pela área de criação (produção, roteiro,
fotografia, som e edição), a fim de que esse membro pudesse auxiliar os companheiros em
caso de dúvidas e emergências. Ou seja, o representante da Fotografia poderia ajudar o colega
de grupo sobre como iluminar ou enquadrar uma cena, assim como a Produção poderia se
ocupar do cumprimento do cronograma, lembrando os prazos estabelecidos pelo evento.
Quanto aos equipamentos utilizados para gravação e edição, foi indicado o uso de
equipamentos fáceis de operar e equivalentes entre si, para que na hora da edição não
houvesse nenhum problema de compatibilidade de formatos de imagem e som. Foi indicado o
uso de câmeras de celular, e os detalhes técnicos foram definidos na primeira reunião, com a
anuência do responsável pela montagem. No caso de gravação de depoimentos à distância, foi
recomendado o uso das salas virtuais e o pedido de back up de som pelo entrevistado
(gravador do celular, por exemplo). No caso de uso de música ou material de arquivo, era
necessário utilizar material livre de pagamento de direitos autorais. Quanto ao tema e
roteirização, a recomendação principal foi referente ao cronograma dos trabalhos. O tema
deveria ser livre e escolhido em comum acordo entre os membros das equipes, que deveriam
levar em conta a viabilidade da produção/edição em dois dias e meio.
Para a montagem e edição final dos vídeos, foi definido um formato de exportação (MP4/H
264), a inclusão das logomarcas obrigatórias e vinheta de abertura padronizada. Os grupos
deveriam definir entre si um responsável pela edição final, embora os membros pudessem
editar partes do material, que não deveria exceder a duração de cinco minutos, sem os
créditos.
Os resultados dos vídeos produzidos permitem a reflexão sobre os conceitos de memória
individual e coletiva que transpassam diversos campos, entre eles da história, da filosofia, da
psicanálise.
Grupo3 - Yasmin Ventura Lucchesi (RJ); Gabriela Castro (UR); Natalia Noemi Eguilior Barcelos Leticia
Martínez (UR); Adriana Carka Dalazen Cichocki (PR); Rafael Soares de Oliveira (PR);
Grupo 4 - Rachel Aranha (RJ); Facundo Barreto (UR); Valentina Braga (UR); Sabrina Soares (PR); Miriam
Galvan Pereira (PR); Odair dos Santos Junior (PR);
Grupo 5 - Pedro Romeiro Etinger (RJ); Yanaina Salgado del Valle (UR); Cristian Osmar Meneses Gutierrez
(UR); Dorotéia Werner da Silva (PR); Murilo de Oliveira Lazarin (PR); Maria Gabriela Goulart Neves (21);
Grupo 6 - María Belén Telechea (UR); Bruna Pedrozo (UR) rcia Regina Galvan Campos (PR); Brendha
Caroline Rocha e Silva de Souza (PR).
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5. A memória afetiva como objeto de produção audiovisual
Recordar é talvez uma das experiências mais importantes do ser humano e que permite
ressignificar o passado fazendo-o presente. No entanto, a memória está diretamente vinculada
ao esquecimento. Supressão (esquecimento) e conservação (recordação) são indissociáveis.
Para o pensador búlgaro Tzvetan Todorov, “a memória não se opõe absolutamente ao
esquecimento. Os dois termos contrastantes são o apagamento (o esquecimento) e a
conservação; a memória é, sempre e necessariamente, uma interação entre os dois” (2000).
Para ele, a memória é uma seleção, um exercício pelo qual o indivíduo, ao recordar, faz uma
escolha do que deseja conservar ou descartar. Maurice Halbwachs (2006), sociólogo francês,
ao sistematizar seu conceito de memória coletiva, afirma que a memória individual pode ser
preenchida com o apoio da memória coletiva, uma vez que os dois tipos de memória (o
individual e o coletivo) se interpenetram e um ajuda a preencher as lacunas do outro (2006, p.
72).
Na busca da reconstrução da história de vida de uma pessoa, é necessário levar em conta os
fragmentos da memória, percebidos não como registros fiéis da realidade, mas como uma
sobreposição de lembranças que associam seu momento pessoal ao vivido em coletividade.
Logo, é possível afirmar que a construção da memória é coletiva e elemento da construção de
uma identidade, conforme afirma Le Goff:
A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar
identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades
fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na
angústia. Mas a memória coletiva não é somente uma conquista, é
também um instrumento e um objeto de poder. São as sociedades cuja
memória social é sobretudo oral ou que estão em vias de constituir uma
memória coletiva escrita que melhor permitem compreender esta luta
pela dominação da recordação e da tradição, esta manifestação da
memória.
Le Goff, 1990: 476.
Podemos observar esse contraste entre memória individual e coletiva no vídeo “El hilo da
vida”
13
, que narra o “tecer da vida”, ou seja, a memória passada entre gerações sobre a
atividade de tecer lã. No vídeo, a presença de um filho que acumula a tradição de seus
antepassados por meio de sua mãe, o conhecimento inerente da atividade. No curta-metragem,
podemos observar um objeto, a “roda de fiar”, maquinário utilizado para tecer lã, no qual o
personagem René Scholz relata que, desde seu nascimento, pôde vivenciar gerações
utilizando o equipamento. Ele conta que a memória afetiva da atividade fez com que não
13
“El hilo da vida” tradução livre “O fio da vida”- vídeo de 05:11 minutos produzido pela equipe 5 da Maratona.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=DyNlWj1YoPg&t=155s. O grupo define o título a partir de
uma mescla dos dois idiomas, tecendo ali a aproximação entre os dois países.
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precisasse de aulas para utilizar o equipamento. Em seu relato, o personagem alega que jamais
venderia o objeto, pelo valor sentimental atrelado às lembranças. Na cena, podemos observar
o personagem utilizando o equipamento, que um dia fora utilizado por sua tataravó, avó e
mãe, memórias estas sempre presentes em sua vida.
FIGURA 1 - RENÉ SCHOLZ COM A “RODA DE TEAR”
Fonte: Frame documentário.
FIGURA 2 - A “RODA DE TEAR”
Fonte: Frame documentário.
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O valor sentimental das memórias atreladas a objetos passados entre gerações é algo bastante
notório nas produções desenvolvidas. No vídeo Nosotras”, também podemos constatar a
forte presença de um objeto, a “roda de fazer ravióli”, presente na família da porto-alegrense
italiana Norma Barcellos Pinheiro Machado.
As histórias contadas sobre os objetos acabaram transferindo
discursos e sentimentos para sua materialidade. Eles adquiriram
valor memorial e patrimonial dentro das casas e famílias e são,
geralmente, insubstituíveis, não são abandonados, apenas
passados de geração para geração ou entregues às pessoas que
são muito próximas à família. Seu valor simbólico, memorial e
também espiritual.
Bosi
14
, 1994 in Nery, 2017: 154.
FIGURA 3 - A “RODA DE FAZER RAVIOLI”
Fonte: Frame documentário.
Ao apresentar o vídeo “Nosotras”, a representante do grupo sintetiza o processo iniciado por
conversas e trocas de recordações e histórias, como um laço da irmandade que encontraram na
14
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças dos velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
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busca do caminho para a narração e da poesia que construíram para estabelecer um diálogo
entre duas histórias de dois países distintos. Os encontros construídos entre a uruguaia Lilian
Miraballes e a brasileira Norma Machado giram em torno das lembranças de suas avós e de
dois objetos herdados delas: uma roda utilizada para finalizar raviolis e uma cadeira de
balanço. As falas e imagens vão se sobrepondo e estabelecendo laços de memória: a
aproximação da família a partir das comidas feitas pela avó e as recordações da infância de
Norma sobre suas brincadeiras na cadeira de balanço.
FIGURA 4 - AVÓ NA CADEIRA DE BALANÇO
Fonte: Frame documentário.
Memória e esquecimento perpassam a fala das personagens. As falas mesclam memórias não
dos objetos, mas das recordações das avós dessas duas senhoras com mais de oitenta anos.
Ao fazê-lo, trazem para o vídeo suas histórias afetivas em uma construção que nos aproxima
da reflexão de Pierre Nora, para quem a memória é afetiva e gica, se alimenta de
lembranças vagas, particulares ou simbólicas, se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na
imagem e no objeto. “A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno
presente” (Nora, 1993, p. 9).
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Isso também está evidenciado no vídeo “Pero el amor continua”
15
, que traz as lembranças de
Nelly D’Andrea Shen, nascida em 1932, em Montevidéu, Uruguai. A entrevistada afirma que
nunca foi materialista, logo, não pode tecer suas memórias a partir de objetos materiais, e
apresenta uma foto dela e seu falecido marido, perguntando para a câmera se a foto
corresponde ou não a algo material. Na foto, tirada em um lugar chamado Cafetin de Antaño,
na confluência das ruas Isla de Flores con Yaguaron, em Montevidéu, vemos Nelly com o
marido na década de 1970. A partir da imagem, ela começa a reconstruir a história da paixão
do marido pelo tango, e mais especificamente pelas músicas de Carlos Gardel, mesclando
suas memórias afetivas com as do espaço que, no fim dos anos de 1960, reunia os
apaixonados por tango em Montevideo para um encontro obrigatório nos fins de semana.
Lá, onde se respirava o tango, Nelly e seu marido se divertiam nas noites de sexta-feira entre
artistas e o público que lotava o tradicional café decorado com fotos de Montevidéu.
FIGURA 5 - NELLY E SEU MARIDO NO CAFÉ “CAFETIN DE ANTAÑ”.
Fonte: Foto de arquivo.
15
“Pero el amor continua”. Tradução livre “Mas o amor continua” - vídeo de 04:50 minutos produzido pela
equipe 4 da Maratona. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gHWBu4_OrqI
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FIGURA 6 NELLY E SEU MARIDO.
Fonte: Arquivo pessoal.
No relato de Nelly, percebemos a riqueza da polissemia da memória na mescla de suas
memórias afetivas e da Montevidéu de outros tempos. O passado, recordado pelo afeto, revive
na memória coletiva da capital uruguaia, confirmando que a história pessoal se reveste de
sentidos também sociais.
Ou, de outro modo: abre-se a possibilidade de que a memória, ao invés
de ser recuperada ou resgatada, possa ser criada e recriada, a partir dos
novos sentidos que a todo tempo se produzem tanto para os sujeitos
individuais quanto para os coletivos que todos eles são sujeitos
sociais. A polissemia da memória, que poderia ser seu ponto falho, é
justamente a sua riqueza.
Gondar, 2008:5.
Partindo dessa premissa, podemos afirmar que as memórias presentes nos materiais
audiovisuais produzidos pela maratona audiovisual são também elementos da memória social
e coletiva. Isso é evidenciado na opção pelo documentário em todos os deos produzidos na
Maratona.
Bill Nichols, crítico e teórico norte-americano de cinema, e ainda autor de trabalho pioneiro
dos estudos contemporâneos do documentário, afirma que "o documentário acrescenta uma
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nova dimensão à memória popular e à história social” (Nichols, 2005, p. 27).
É, portanto, um campo que explicita a realidade social de acordo com a seleção do seu
realizador. É nesse tópico, das imagens captadas pela câmera a partir do real, que, para
Nichols, se estabelece o vínculo do documentário com o mundo histórico. Isso amplia a visão
do senso comum de que memória é o que corresponde às lembranças de fatos passados ou do
que o entrevistado entende por passado. A reconstrução das lembranças de um entrevistado é
sempre ressignificada pelo documentário, ganhando um sentido coletivo/ social.
Em “ondas de memória”
16
, o uruguaio Juan Pedro Santos conta sua experiência com o rádio e
informações que o veículo lhe trazia de todo o mundo a partir do fim dos anos 1940. Seu
objeto é um rádio antigo, mostrado em primeiro plano na cena que abre o vídeo.
Recorda de seu primeiro aparelho, que funcionava à bateria e da notícia que o marcou em
1952. Com precisão, relembra a queda do Voo Pan AM 202 em 29 de abril de 1952, um dos
primeiros acidentes registrados na Amazônia, que vitimou os 50 ocupantes, entre passageiros
e tripulantes. O avião caiu em uma área fechada localizada a 440 km a sudoeste da cidade de
Carolina (Maranhão), e a informação ficou registrada em sua memória mais de sessenta anos
depois.
FIGURAS 7 - JUAN PEDRO COM SEUS RÁDIOS
Fonte: Documentário Ondas de Memória.
16
https://www.youtube.com/watch?v=QP7Tt6dlz94
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A outra entrevistada, brasileira, apresenta-se enquanto a câmera mostra seu rádio em cima de
uma antiga mala de viagem. Ao dizer seu nome, Margarida Bulgarelli, de 94 anos, cita seu
marido, Genuíno Bulgarelli, e localiza sua chegada ao Paraná 60 anos. O rádio que vemos
é seu primeiro rádio, comprado no município catarinense de Ponte Serrada. O aparelho era
uma atração entre seus vizinhos, que passavam na estrada, de onde se ouvia bem alto o rádio
que era ligado justamente para ser escutado por todos, pois poucas pessoas tinham rádio
naquele tempo na cidade de Ampére (PR).
17
Sua lembrança pessoal nos permite perceber seu papel social na comunidade, passando de um
registro de acontecimento para a construção de um referencial sobre o passado e as mudanças
de acesso à comunicação que ocorriam em sua época.
FIGURAS 8 - MARGARIDA BULGARELLI COM SEU PRIMEIRO RÁDIO
Fonte: Documentário Ondas de Memória.
O rádio, para Margarida e Juan Pedro, mais do que um objeto que remete ao afeto, é também
uma abertura para o mundo. A precisão com que Juan Pedro relembra a letra de uma canção
sobre Barcelona e o detalhamento do que Margarida ouvia no rádio trazem fragmentos de um
tempo coletivo que ilustra como a memória individual é também coletiva. Juan e Margarida
17
Ampére é um município brasileiro do sudoeste do estado do Paraná. Sua população, conforme estimativas do
IBGE de 2019, era de 19.152 habitantes
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estão separados por fronteiras, mas suas lembranças vividas são patrimônio de suas
comunidades; ao contá-las, constituem a história oral de seus lugares. Mesmo que seus
discursos idealizem os fatos, ali está entrelaçada a memória de um tempo, tal como um
arquivo que se ancora nos lugares da memória, conceito teórico de Pierre Nora, para quem um
objeto só constitui um lugar de memória quando “escapa do esquecimento e uma comunidade
o reinveste com seus afetos e suas emoções”, referindo-se assim a uma história coletiva
(Nora,1993, p. 21).
O vídeo “Mate” transita na questão do individual e coletivo ao trazer a relação do
entrevistado, Ramon Aguiar Fernandez, uruguaio de 95 anos, com o mate, uma bebida
comum no Uruguai e que tem como característica a socialização, além da importância
cultural, social e econômica no sul da América do Sul (Argentina, Uruguai e sul do Brasil).
Ali, a cultura do mate está nos espaços públicos e privados e se relaciona com questões de
afeto que remetem à tradição e à sociabilidade. Seja no contexto urbano ou rural, a tradição
permanece e se reinventa sem se perder. O tema tratado do ponto de vista documental traz o
afeto como fio condutor, podendo se enquadrar em um dos seis modos descritos por Nichols,
o poético, que enfatiza associações visuais, qualidades tonais ou rítmicas, passagens
descritivas e organização formal (Nichols, 2005, p. 62).
FIGURAS 9 - "CUIA DE MATE"
Fonte: Frame documentário.
Ramon, morador de Santa Rosa, Província de Canelones, Uruguai, ensina o preparo do mate,
recordando que antes o preparava em um fogão, alimentado a carvão, da mesma forma que
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faz hoje em um fogão moderno. Para sua entrevista, Ramon usa a garrafa térmica e ''cuia'' de
mate de seu vizinho, pois, segundo afirma, “toma muito pouco mate” atualmente. Essa cena
caracteriza os elementos da ficção presentes no documentário, o que dificulta, para Nichols, a
própria definição do documentário, sempre relativa e comparativa à sua tradição, que, ao
mesmo tempo que nos transmite a ideia de autenticidade e representação do real, lida com a
representação da realidade.
FIGURAS 10 - "RAMON FERNANDEZ"
Fonte: Frame documentário.
Ramon, ao nos informar que não toma mais mate e que usa o kit de mate do vizinho, explicita
a escolha dos realizadores e seu caráter socializador quando se refere à cuia como sua
companheira e à quantidade de vezes que tomava mate em seu trabalho, com os colegas, cada
um com sua cuia, usando o plural para referir-se à roda de mate.
Por fim, no vídeo “Bella União - Una película para Sr. Luiz”, também podemos evidenciar o
fator memória bastante presente na narrativa. O personagem Luiz Nunez relembra um
episódio marcante de sua vida pessoal e profissional, a explosão de um depósito clandestino
de fogos de artifício
18
em Uruguaiana, na década de 90. Luiz era bombeiro na época e fez
18
Vídeo de arquivo: Reportagem sobre incêndio em fábrica de fogos de artifício em Uruguaiana (01/12/1994)
https://www.youtube.com/watch?v=DZp2BJEtGA4
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parte da equipe principal de resgate. No vídeo, os realizadores utilizam imagens de arquivo do
noticiário da RBS
19
para ilustrar a fala do personagem. Para Nichols (2005, p. 26), essa
escolha "torna visível e audível, de maneira distinta, a matéria de que é feita a realidade
social, de acordo com a seleção e a organização realizadas pelo cineasta". Além disso, esse
recurso visual funciona no vídeo, para ilustrar a voz embargada do personagem, que narra
com pesar o cenário da catástrofe que vivenciou com seus próprios olhos no dia 01 de
dezembro de 1994.
FIGURA 11 LUIZ NUNES A SERVIÇO DO CORPO DE BOMBEIROS DO URUGUAI.
Fonte: Foto de arquivo.
6. Conclusão
O audiovisual conta histórias, e mais do que isso, serve como ferramenta social de identidade
e memória. Pensando nessa premissa, este trabalho teve como principal objetivo destacar as
produções audiovisuais desenvolvidas na Maratona Audiovisual, no ano de 2021.
Os seis vídeos desenvolvidos apresentaram um importante fator em comum: a temática da
19
O Grupo RBS é um conglomerado de mídia brasileiro, fundado em 31 de agosto de 1957 por Maurício
Sirotsky Sobrinho.
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memória afetiva, individual e coletiva dos personagens, presentes em cada narrativa. A
memória foi o fio condutor das histórias retratadas, com personagens complexos que utilizam
seus relatos com um olhar saudosista e afetuoso do passado, não se limitando às barreiras de
tempo e espaço. Esse elemento mostrou-se essencial para a construção dos vídeos, realizados
com a premissa do dispositivo “História dos objetos”, do projeto “Inventar com a Diferença”.
As recordações e relatos de uma pessoa são elementos construtores não de sua história
como da história da humanidade. Recordar e registrar suas recordações é uma forma de se
inserir na história, e em um panorama de sua época.
Os vídeos que comentamos puxam o fio da vida, nos ajudam a entender fatos históricos e
nos deliciarmos com histórias individuais. Nos confirma as teorias de que memória é
também uma construção coletiva, pois o indivíduo tem sua identidade construída a partir de
seu tempo e da sociedade onde está inserido.
É o tempo e suas transformações que se apresenta como cenário em cada um dos vídeos, seja
através do resgate de histórias, como do bombeiro Luiz ou de sensações como de Nelly
sobre seu marido apaixonado por Tango. Interessante observar nas narrativas a narração no
tempo presente, memória viva, transformada através do tempo, mas retomando o
pensamento de Garcia Márquez tecidas a partir do que recordamos, não apenas do que
vivemos para contar. Uma reconstrução que parte do presente e se conecta e se soma a um
passado de afetos, sensações e fatos vividos em determinado momento histórico. Pois,
afinal, com afirmou Pablo Neruda, “nosotros, los de entonces ya no somos los mismos”.
Podemos observar também, tanto no roteiro quanto no material final produzido, uma
sensibilização das histórias, por meio de objetos materiais afetivos e contextos sociais
diversos.
A integração entre estudantes oriundos do Brasil e do Uruguai também foi um fator de
destaque nas produções, visto que cada integrante pode cumprir uma função essencial na
produção totalmente remota de histórias cativantes, que retrataram a essência das histórias dos
personagens apresentados.
A cooperação entre o Brasil e Uruguai na área de formação de docentes para o ensino
audiovisual foi particularmente importante para a realização do projeto, visto que puderam ser
compartilhadas as semelhanças sociais e culturais, da mesma forma que avaliadas diferenças e
dificuldades da produção remota no contexto de pandemia do COVID-19.
Vale ainda destacar o acordo de cooperação entre as instituições, Cineduca, UFF e a
UNESPAR, como um passo inicial na colaboração de desenvolvimento de pesquisas
conjuntas na área de cinema e educação, reforçando os vínculos culturais e territoriais entre os
dois países.
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Solange Straube Stecz
Doutora em Educação/UFSCAR. Coordenadora e docente do programa de Pós Graduação em
Artes, professora do Curso de Cinema e Audiovisual. Membro do Comitê Brasil, Programa
Memória do Mundo da UNESCO. Integra o GT Artes, educação e cidadania do CLACSO -
Conselho Latino- Americano de Ciências Sociais.
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Rafaela Calil Mussi Lima
Mestranda em Artes do Programa de Pós-Graduação em Artes/PPGARTES da Universidade
Estadual do Paraná. É produtora audiovisual do Laboratório de Cinema e Educação -
LabEducine/UNESPAR, programa de extensão universitária que dialoga com as novas
problemáticas envolvendo os campos do Cinema e da Educação. É Designer Educacional no
curso de Especialização em Gestão Cultural da Universidade Estadual do Paraná.
Elianne Ivo Barroso