Cristiano Alencar Arrais- Julio César Bentivóglio
PRÖLOGO
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PRÓLOGO
A revista Diversidad de las Culturas chega ao seu terceiro número com a publicação de um
conjunto de trabalhos voltados para o tema Intelectuais, educação e cultura em perspectiva
transnacional: continuidades e descontinuidades no pensamento latino-americano”. Num
mundo altamente impactado pela globalização e pelo avanço da comunicação digital, este
dossiê temático oportuniza aos leitores realizar um movimento de ampliação de seus
horizontes culturais, especialmente no que concerne ao contexto latino-americano. Seguindo
as ideias-força que orientaram a gestação do periódico, os organizadores desse dossiê
consideraram que pensar a cultura e a educação num contexto de forte alteração dos padrões
de comunicação especialmente com a crise pandêmica, com o qual o mundo ainda tem que
lidar, e com a expansão da vida digital exigia, ao mesmo tempo, refletir sobre as
continuidades e descontinuidades do próprio pensamento latino-americano.
Nesse sentido, o dossiê foi receptivo a propostas que exploravam movimentos artísticos,
intelectuais e/ou redes acadêmicas, assim como os distintos processos de apropriação de
ideias e saberes transnacionais. O artigo Racismo epistémico en el Perú: las epistemes
eurocéntricas como una tentativa de proyecto “universal”, por exemplo, apresenta aos
leitores as dinâmicas inerentes ao processo de segregação racial dentro do campo intelectual,
especialmente no que concerne às instituições de estado no Perú. Esse racismo epistêmico que
reafirmou a centralidade dos valores ocidentais, impediu o estabelecimento de políticas
públicas a partir da perspectiva indígena e para os indígenas, sem as quais no será posible
constituir una verdadera república, donde todos y todas sean considerados como ciudadanos
plenos.”. A temática da relação entre Estado e sociedade civil também é evocada em
Violência e normalização: discurso na imprensa goiana na primeira metade do século XIX
(1838-1850). O trabalho identifica, por meio da análise do periódico oficial da província de
Goiás (Brasil), os dispositivos de controle social, agenciados pela elite local. Trata-se, nesse
sentido, de evidenciar o modo como os comportamentos sociais foram normalizados com
base em um conjunto de estratégicas de repressão, incluindo a perseguição e criação de
inimigos sociais, baseados no pensamento patriótico pretendido pelo Império brasileiro. O
dossiê também deu atenção para abordagens que privilegiassem processos de negociação e
tradução cultural, especialmente no que se refere aos fenômenos de integração cultural e de
violência simbólica. Essa abordagem é encontrada no trabalho A concepção de natureza nas
gravuras de Jhoannes Stradanus; um olhar através da interculturalidade crítica. O autor
constrói uma trajetória analítica que aborda o projeto de modernidade européia baseada na
noção de progresso, mas também de violência contra todas as formas culturais entendidas
como arcaicas ou atrasadas. Nas gravuras de Stradanus sobre a América, inspirado na
narrativa judaico-cristã, essa oposição se estabelece “entre o mundo ocidental, cristão,
científico, racional, masculino e o mundo selvagem, canibal, nu, irracional, feminino, de
forma que essa oposição, em verdade, é a busca pela separação daqueles que alcançaram o
poder divino e aqueles que apenas vivem das criações divinas”.
Também, dois artigos se dedicam a analisar o modo como a cultura brasileira foi interpretada
no século XX. O artigo A cultura brasileira: Fernando Azevedo, apresenta ao leitor a
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concepção de história de um dos mais importantes sociólogos da educação, no Brasil. Neste
trabalho, é enfatizada a sua concepção de história e a função civilizadora que é atribuída às
elites sociais e econômicas brasileiras. Nessa concepção, a Universidade de São Paulo (USP),
tinha papel central, de orientador da solução dos grandes problemas nacionais. Ao ressaltar,
no conjunto da obra de Fernando Azevedo, a persistência de uma filosofia da história
essencialista e de viés exemplar, o autor porpõe que Azevedo buscava a superação dos “males
de origem”. Assim, ao mesmo tempo em que sua síntese esconde o país, revela os
compromissos do autor com uma visão sobre o que era a cultura brasileira, mas
especialmente o que ela deveria ser no futuro. o artigo A atualidade e o caráter
anticolonial dos isebianos históricos, procura demonstrar a atualidade das ideias dos
idealizadores do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) uma das principais
instituições representantes do nacional desenvolvimentismo bem como sua coerência com a
tradição pós-colonial. Com base nessa tentativa de aproximação, o autor observa que no que
concerne ao conjunto de autores analisados, “a ideologia do desenvolvimento tem de vir da
consciência das massas, isto é, sem ideologia do desenvolvimento não há desenvolvimento
nacional, sem ideologia não há realidade coletiva.”
Como sugerido na chamada desse dossiê, em um mundo em que o ambiente digital, as
comunicações remotas e os contatos virtuais se integraram à experiência cotidiana, importa
ressaltar o impacto sobre as identidades coletivas e/ou individuais. Os dois trabalhos
apresentados na sessão Diálogos e reflexões, direcionam-se para esse espectro de temas. O
artigo El uso social y político del patrimonio cultural analizado a través de situaciones en
Sudamérica: Patrimonio, academia e imaginario nacional en Brasil y Argentina, realiza, ao
mesmo tempo, uma abordagem comparativa entre as políticas patrimoniais empreendidas na
Argentina e Brasil, e um vigoroso levantamento das políticas de gestão do patrimônio,
especialmente no período recente, quando se observa uma forte desvalorização desse tema,
especialmente no que concerne os governos de Macri (Argentina) e Bolsonaro (Brasil). Além
disso, este trabalho altamente propositivo ressalta para o leitor que “la importancia social de
la gestión del patrimonio, en todos sus aspectos, debe ser informada a la población ya que
involucra aspectos salientes de su organización, imagen, concepción y proyección. Es preciso
que la sociedad tenga claridad sobre lo que se propone, con real oportunidad de participación
y debate. Ello es deseable en toda coyuntura política, mucho más en la actual y no puede
darse por sobreentendida”. O engajamento socialmente responsável é, segundo o artigo, um
dos princípios-chave para as propostas apresentadas sobre as políticas de gestão do
patrimônio, atualmente. o artigo Teses sobre a didática da história, originalmente
apresentado no Fórum de Teoria da História, realizado em agosto de 2022, observa que os
processos de atribuição de sentido vão para além do ambiente escolar. A tentativa de
recuperação do humanismo como chave para recolocar o tema da cultura histórica convida o
leitor a recuperar a noção de comunidade, num contínuo exercício de re-orientação, de
desnaturalização com vistas à uma prática intelectual a abertura hermenêutica para o Outro
que valoriza a diferença e o cuidado com o outro.
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Os dois textos que encerram esse dossiê sintetizam o espírito que motivou a proposição dessa
revista: a convicção de que é pertinente e necessária a inversão da máxima historicista que
cunhou o topos singular universal da história: para além da história latino-americana, estão
suas histórias, suas múltiplas temporalidades, seus distintos projetos civilizatórios, enfim,
suas distintas culturas.
Boa leitura!
Cristiano Alencar Arrais (UFG - Brasil)
Julio César Bentivóglio (UFES Brasil)